quarta-feira, 17 de abril de 2013

Divagações esquizofrênicas

Surtar tem vantanges?
    Hoje comprei um colchonete para dormir melhor em minha barraca. Não estava conseguindo dormir nos pedaços de papelão, pois estava causando uma certa dor no osso que fica perto da poupança(foi a melhor palavara que encontrei) quando tentava dormir de lado. Quem souber o nome do osso referido pode colocar nos comentários. 
    Não consegui dormir bem nos últimos dias, por vários fatores:
1- medo de ser roubado
2- medo de ser agredido por skinheads ou outros animais
3-falta de conforto 
4-barulho, tanto de pessoas como de veículos
    Estou carregando cerca de 8kg em minha mochila.  Barraca, colchonete, coisas de higiene, etc. Roupas, só cinco peças. Fico pensando em o que posso tirar para poder andar melhor depois que o meu pé melhorar, pois pretendo continuar as minhas andanças, já tenho plano para um caminho, que é bem longo e deve durar cerca de um mês. 
    Há onze anos atrás, no meu primeiro surto, cheguei a dormir na mesma região onde fico a maior parte do tempo hoje. Não carregava nada comigo, somente a roupa do corpo mesmo. Quando não estava perambulando que nem um zumbi pela madrugada afora, conseguia dormir em qualquer lugar, sem papelão e nem nada. Era na calçada mesmo, e até hoje não sei explicar isso. Não tinha preocupações nessa fase, em que já não estava enxergando inimigos por todos os lados, mas ainda estava bem fora da realidade. Não estava me preocupando com a higiene e nem com o que as pessoas estavam pensando sobre mim. Estava comendo desesperadamente tudo o que via pela frente. Não me preocupava se teria ou não uma diarreia(e não tive!), chegando a comer até o lixo da padaria na Av. Augusto de Lima. 
    A sensação era de que na fase aguda do surto, a área do cérebro responsável por avisar ao corpo que o estômago estava vazio fora desligada. Só sentia muita sede e cheguei a perder 25kg. Ao voltar um pouco para a realidade, comecei a comer que nem um louco, para tentar recuperar o peso e para saciar a fome mesmo, que era muita, era como se estivesse acumulada no tempo em que fiquei fugindo dos inimigos que estavam em minha mente. 
    Devido a essa despreocupação toda, e pela facilidade em dormir, confesso que chego a pensar se não seria melhor viver estando naquela fase do surto, que não sei como descrevê-la direito. Como disse, já não estava enxergando os inimigos, mas ainda estava fora da realidade e quase não me comunicava com as pessoas, chegando a pensar que todos sabiam o que estava se passando pela minha cabeça. Essa situação gerou até algumas situações engraçadas, com algumas pessoas tentando se comunicar comigo por gestos, talvez pensando que eu fosse mudo.

     Então me vem a pergunta: não seria melhor viver meio que ensurtado? Sem preocupação nenhuma? Conseguindo dormir em qualquer lugar? E pouco se lixando para a opinião alheia? O Renato Aragão, no programa Fantástico, no quadro "O que vi da vida", disse que gostaria de ser o Didi, com aquela despreocupação toda do personagem. Na verdade, grande parte dos humoristas são um pouco tristes, alguns chegando até a ser um pouco mal humorados. 
    Claro que essa fase não foi uma maravilha total, cheguei até a ser agredido, apesar de continuar sendo um pacato cidadão, só que surtado. Mas, olhando os prós e os contras, chego a ficar na dúvida. Não estava nem ai se o meu time havia ganhado ou perdido, se o aumento do salário mínimo foi satisfatório ou não, e se o meu nome estava no SPC, dentre outras coisas. 
    Acho que deveria haver um equilíbrio entre a loucura e a razão: Não devemos ser totalmente normais e nem totalmente loucos e irresponsáveis. Seria essa a maluquez que o Raul Seixas tanto cantava?

Adaptado
    Praticamente dois meses nas ruas, e já me considero adaptado, não completamente, é claro. Já me sinto um morador de barraca de rua. Ao entrar no Centro de referência para moradores de rua, já não me sinto um estranho, me considero como qualquer um dos frequentadores. No albergue também. Por falar em barraca, certo dia, quer dizer, madrugada, ouvi uma das perguntas mais descabidas de toda a minha vida. Estava deitado, tentando dormir, quando, por volta das três horas, um indivíduo deu uma sacudida na minha residência e perguntou:
- Tem gente?
- Tem, né! - respondi.
    Será que o cara estava pensando que a minha barraca era um banheiro? Ou então que alguém a montou no passeio e a esqueceu por lá? Vá se saber...
    No último post sobre o Caminho do Padre Anchieta esqueci de agradecer aos capixabas pela atenção. Não poderia de deixar de dizer que não fui incomodado em nenhuma das vezes nos lugares onde montei minha barraca em solo capixaba. Acho que todo mineiro se sente em casa no Espírito Santo, até o modo de falar é parecido, tirando o sotaque dos mineiros, que é único né?
    E por falar em sotaque, alguém sabe me dizer se capixaba tem sotaque? Se tem, sinceramente não deu para perceber nos dias em que estive por lá. Acho que é o único estado que não tem um sotaque ou maneira de falar fácil de se perceber. Conversei com muitos e não achei nada, nadinha mesmo que pudesse ser considerado sotaque. Ai os curitibanos irão dizer: "Nós não temos sotaque, falamos corretamente o português!" Mas é justamente por isso mesmo que dá para se identificar o curitibano pela fala. Eles falam ao pé da letra "Doce de Leite", ao contrário da maioria dos brasileiros, que dizem: "Doci di leiti". Então o falar correto acaba se tornando meio que um sotaque, não entrando a questão se o português está certo ou não né?
   Aqui em BH também quase não fui incomodado. Quase. Teve uma noite em que um cara deu um assobio na maior altura abem perto do meu ouvido. Nem precisa dizer que fiquei pé da vida, mas resolvi ficar no meu cantinho, pois o cara estava com mais pessoas. Teve também o guarda truculento, que resolvei me incomodar, e balançou a barraca para me acordar e pedir os meus documentos. Acho que esse guarda não raciocina muito bem, será que ele pensou que um bandido ou foragido da lei iria se esconder em uma barraca armada perto do centro de BH?
    Mas no geral não tenho do que reclamar. A maioria das pessoas acha engraçado o fato de uma barraca estar armada em plena cidade. Com o tempo fui conseguindo achar os melhores lugares para armá-la, o que foi uma tarefa um tanto o quanto difícil. Tive que analisar vários pontos antes de escolher esses lugares:
    1- Marquise: é essencial, principalmente nos tempos de chuva, que o local tenha uma ampla marquise, por causa da chuva de vento.
    2-Se a marquise tem dono: as melhores marquises são disputadíssimas e já possuem dono. Ocupar uma marquise com dono pode ocasionar conflitos, armados ou não. Alguns edifícios já possuem grades nos passeios, para impedir que os moradores de rua ocupem a marquise. Algumas vezes, os vigias são orientados para impedir que os moradores de rua se abriguem nelas. Concordo com essa decisão, pois alguns moradores de rua fazem suas necessidades em qualquer lugar, deixando um cheiro nada agradável. Será que estão querendo marcar território?
    3-Se o local é movimentado à noite: Montar a barraca em um local agitado tem uma desvantagem e uma vantagem. A desvantagem é o barulho, tanto dos carros como dos transeuntes. A vantagem é que, se alguém nos importunar durante à noite, pode ficar mais fácil procurar ajuda. Já montar a barraca em um local tranquilo tem o efeito inverso. É ótimo para dormir, mas se por acaso aparecerem pessoas para nos importunar, ai é só o nosso anjo da guarda mesmo.
    Há uns dias atrás, levei um baita susto, não sei dizer o que tive, mas que hoje acho bastante engraçado. Não sei se foi pesadelo, uma pequena alucinação auditiva causada pelo stress de dormir nas ruas ou as duas coisas juntas. Estava dormindo tranquilamente quando fui acordado subitamente por um estrondo. Ouvi então uma autoritária voz gritar:
    - Abra a porta! Abra a porta!
    Pela voz pensei que fosse um policial e não hesitei em abrir os zippers da barraca. Mas não vi ninguém pelas proximidades, somente o motorista de um caminhão que transportava caçambas. Na hora não entendi nada e voltei a dormir. Só no dia seguinte é que me dei conta do fato: o estrondo era da caçamba sendo colocada no caminhão ou no passeio, e a voz foi resultado do meu receio em ser incomodado durante a noite. Não sei se foi pesadelo ou uma alucinação, só sei que foi bem real. Um fato que confirmou que era imaginação foi que a voz pediu para abrir a porta. Ai nem precisei raciocinar muito, pois desde quando barraca tem portas?
    Mas é isso ai, meu pé não está totalmente bom, mas acho que já dá para fazer uma outra andança, pois esperar especialista do SUS é a mesma coisa do que esperar papai noel no natal. Estou pesquisando alguns lugares, alguém ai tem uma sugestão?

 Covardia
    Há uns dias atrás, um esquizofrênico foi assassinado aqui em BH. Pouco se falou no caso. O agressor, que era seu próprio irmão,  disse que cometeu o ato pois o portador não queria tomar banho. Imaginem se ocorre o contrário? Iria virar manchete nacional, e o estigma e o preconceito aumentariam mais ainda. Só espero que esse cara passe o resto de sua vida na cadeia. O link com a matéria vai abaixo:

http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/04/14/interna_gerais,371446/homem-mata-o-irmao-que-se-negou-a-tomar-banho-na-grande-bh.shtml

7 comentários:

  1. Olá, caro colega. Sempre passo pelo seu blog, na tentativa de ler os seus textos e melhor compreender tudo que envolve a esquizofrenia. Para ser sincero, minha curiosidade a respeito do tema se dá em função da curiosidade que tenho sobre a minha própria pessoa - ultimamente, ando solitário, irritado com futilidades, sendo grosso e mal educado com pessoas especiais, nao tendo vontade de nada, apenas dormir e ficar isolado! Muitas vezes, ainda, tenho impressão de perseguição, neste momento, inclusive, não consigo dormir (já são 3hs da manhã) por pensar que alguém está em meu quarto. Nas ultimas semanas, essa "insônia do medo" tem sido uma constante em minha vida. Sinto que estou em uma fase de destruição da minha pessoa. Não sei ao certo como descrever e isso me entristece bastante. Espero que fiques bem, seja na rua ou num albergue. Tome cuidado apenas! Um abraço de seu leitor, FA.

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  2. Olá, obrigado por seguir o blog. Isso o que você está passando pode ser uma fase, ou por causa de algo recente que aconteceu em sua vida, não posso dizer com certeza. Mas, mania de perseguição, vontade de ficar só, irritabilidade, todos tem, em menor ou maior grau. Procure saber de onde vem essas coisas(desculpe o modo simples de escrever), talvez conversando com uma psicóloga ou analisando a si próprio mesmo. Quando mais cedo descobrir de onde vem esses pensamentos melhor. No momento eu estou numa fase mochileira, estou preparando para fazer uma viagem de 700km a pé, estou planejando os detalhes, já que o orçamento é curto rsrsrs Tudo de bom por ai e se cuida ai.

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  3. Ou Júlio! Bom ler seus relatos. Já pensou fazer o Caminho da fé? De Tambaú/Sp a Aparecida do Norte, são uns 400 km - passa em muitas cidades ao Sul de minas, na serra da Mantiqueira; o caminho e muito lindo e tranquilo, se cuida com o frio; tem pousadas concebidas a preço baixo

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  4. Já ouvi falar nesse caminho, depois vou dar uma pesquisada, se for bonito vou fazê-lo sim, independente de não seguir nenhuma religião. O frio me preocupa mesmo, conheço um pou co do sul de Minas, por isso vou fazer esse do Caminho Velho da estrada real em maio, antes do inverno, por que se não teria que aumentar e muito a bagagem. Valeu pela dica e por visitar o blog.

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  5. Obrigado Daniel, não sou um escritor, mas tento da melhor maneira possível mostrar que a esquizofrenia não é o bicho de sete cabeças que andam pintando por ai.

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  6. Uau, você deu uma aula de camping selvagem urbano aí em cima, hein! rs

    Gosto muito de acampar, pela simples liberdade da coisa. Barraca na mochila, e qualquer lugar é lugar para uma boa noite de sono. Em praias ou em meio urbano, é bem por aí mesmo o que você descreveu, das vantagens e desvantagens dos lugares.

    Parabéns mais uma vez pelos excelentes textos!

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