segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Adeus abrigo

4/01/2014 Sábado
cidade de Peruíbe

    Último fim de semana aqui no abrigo. Terça feira estarei viajando para São Paulo, a fim de fazer os Passos dos Jesuítas. O que estou sentindo neste momento? Sinceramente não sei. É um misto de sentimentos e sensações. Claro que estou alegre e ansioso por voltar a caminhar e, o melhor, pelas praias do nosso Brasil. Estou um pouco receoso também, por não conhecer bem o povo e as terras paulistas. 
    Bem, isso é o que consigo descrever com facilidade, as palavras que aparecem em minha mente sem fazer esforço algum. Mas e em relação aos companheiros do albergue? Muito difícil de descrever essa situação. O que sinto, além da tristeza em ver tantas pessoas em dificuldades? Fiz muitas amizades por lá, apesar do meu jeito caladão de ser. A verdade é que me sinto mais á vontade ao lado de pessoas humildes. Claro que vale a pena ressaltar que humildade não tem nada a haver com a questão financeira da pessoa. Ser humilde para mim, como já disse, é não se achar melhor do que os outros. Uma outra verdade é que algumas pessoas ficam humildes apenas nas dificuldades. Depois que a situação se normaliza, voltam a sua arrogância e prepotência de sempre. 
     Muitos usuários do abrigo acabaram de sair da cadeia, não sei se por causa de roubo, tentativa de homicídio ou próprio homicídio. Não tenho medo deles, pois sei que não sou de confusão. Entrei no abrigo na maior humildade e vou sair na humildade também, não me achando melhor do que ninguém por ali. Respeitei todos ali e acho que também fui respeitado pela maioria dos caras lá do abrigo. Aprendi que a humildade vale ouro e que pode valer a nossa vida também. Não é complexo messiânico, mas, se Jesus andava ao lado dos pecadores, por que eu, que não sou nenhum santo, não posso conviver com pessoas que cometeram e ainda cometem erros em suas vidas? Não saio por ai com os outros caras do abrigo, sempre gostei de ficar na minha mesmo, passo a maior parte do tempo no parque ecológico, curtindo a natureza e a solitude. 
    Tirando o dinheiro, sempre que pude ajudá-los, o fiz com o maior prazer. Isso me fez sentir mais útil. No início, como a galera sabia que sou aposentado, não me deixavam em paz. Era cinquenta centavos para um, um real para outro e, se desse bobeira, no final do dia já tinha desembolsado uns cinco reais só para "fortalecer"# a galera.
    Resolvi cortar a grana mas eles continuaram a ter consideração comigo. Me senti mais respeitado no abrigo do que em uma firma onde trabalhei por bastante tempo, em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. Os outros funcionários não gostavam muita da ideia de um cara da capital ganhar mais do que eles. Até a esposa do dono da firma tinha um pouco de ciúmes. O que eu tinha a haver se eles já não se davam bem como no início? 
    Mas, voltando ao abrigo, lá não só tem caras caras que já tiveram passagens pela policia. Tem muitos caras de outros estados a procura de emprego na capital do mais Belo Horizonte do Brasil. Podemos dizer que existem muitas tribos no abrigo, e que convivem pacificamente umas com as outras. Têm os trecheiros, os que estão a procura de emprego, os que estão fugindo de trabalho, os usuários de drogas que fazem tratamento no CERSAM e os usuários que não fazem tratamento. Tem também alguns aposentados, alguns caras que trabalham mas que não ganham o suficiente para pagar um aluguel, enfim, vários perfis de usuários do abrigo. Tem também muitos idosos e as pessoas que estão com algum problema de saúde e que ficam na permanência.
     Então, como podemos ver, tem muita gente boa por lá, mas nem todo mundo ali é um santo. Não posso dar bobeira, infelizmente tenho que "confiar desconfiando"  de todos por lá. A maioria sabe o que sou aposentado, não sei esconder essas coisas, não gosto de ficar inventando situações que não correspondem a realidade. Outro dia um cara jogou uma indireta, ao dizer que o crack não é uma droga tão viciante assim, e que qualquer um pode usar e parar a hora que quiser. Talvez ele estivesse querendo que eu experimentasse, sei lá. Tenho que estar atento o tempo todo, quando eles se aproximam de mim. Fico triste por estar podendo cometer uma injustiça, ao pensar que todos estão querendo tirar vantagem de minha aposentadoria, mas já fui roubado uma vez por um cara que se dizia meu amigo e que se aproximou de mim apenas com essa intenção.
    Gostava muito quando eles me pediam para ajudá-los, principalmente quando tinham alguma dificuldade em relação aos celulares mais modernos, para ativar um chip, etc. Ficava trocando músicas via bluetooth com eles, e sempre me chamavam para responder alguma dúvida que tinham, por me considerarem um cara inteligente( o que não sou, é claro).
    Vou sentir saudades do abrigo sim, a verdade é essa. A convivência acaba fazendo com que nos apeguemos as pessoas. Vou sentir saudades, apesar de ter que acordar às cinco da manhã em pleno horário de verão. Vou sentir saudades, apesar da cantoria noturna do galo do vizinho. Vou sentir saudades, apesar das filas: fila para entrar, para deixar a mochila no guarda volume e pegar a toalha, da fila para tomar o banho, da fila para entregar a toalha e da fila para jantar. Vou sentir saudades, apesar das pequenas discussões e dos roncadores, que vez ou outra me tiravam o sono. Vou sentir saudades, apesar de todos os perrengues, por que, apesar de tudo fui respeitado e considerado pela maioria, apesar dos meus defeitos e de ser um 22.
    Talvez eu seja um louco mesmo. Louco pela vida, louco por achar que só irá me acontecer coisas boas durante minhas andanças. Louco por pensar que não existem pessoas mal intencionadas por ai. Se os medicamentos me fizerem enxergar uma triste realidade, prefiro ficar sem eles e viver em meu mundo, onde nem tudo é perfeito, mas é onde o respeito e a paz prevalecem sempre.
-obs: não sou contra os medicamentos, mas, creio que, no meu caso específico e na minha situação atual, não é o mais indicado para mim.
    Bem pessoal, é isso ai. O importante é tirarmos sempre lições de todas as situações em nossas vidas, principalmente as mais difíceis. Uma lição que aprendi é dar valor aos bens materiais que conquistamos, independente de serem os mais modernos ou não. Que saudades da minha antiga TV de tubo e dos filminhos velhos da sessão da tarde! Da minha cama, com o colchão novinho que comprei. Podia acordar a hora que o meu corpo pedisse para ser acordado. Mas, bola pra frente, sei que o que fiz foi o correto, não iria aguentar viver e conviver com usuários de crack que trocam a noite pelo dia e que fazem de tudo para sustentarem o seu vício. Essa droga tomou conta do lugar onde morava, e, se a própria polícia não deu conta do recado, não vai ser eu quem irá consertar esta situação, pois o complexo de salvador da pátria também não mais o tenho. . Até o próximo post, provavelmente em uma lan house no litoral paulista, pois irei também postar o diário da viagem, além das fotos, é claro.







     
    O acaso vai me proteger, enquanto eu andar distraído...





# o termo fortalecer é muito usado, quando se pede ou se ganha alguma coisa, é em relação a amizade. 

8 comentários:

  1. Olá ^-^ queria lhe dizer que leio o seu blog faz alguns dias e amo sua maneira de escrever, ver o mundo e o pouco que pude conhecer de voce, me fez perceber que voce é uma pessoa incrivel. Nao tenho esquizofrenia, tenho outros tipos de doença que creio que para voce sao tao desconhecidos como a esquizofrenia para mim. Creio que podemos aprender um com o outro. Espero sua resposta pelo meu e-mail. Que é analovebones@hotmail.com (nao repara no nome haha) tenha um otimo dia *-*

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    1. Obrigado Ana pela visita ao blog, eu vou lhe responder por email sim, assim que puder, pois já estou viajando e nem sempre encontramos lan house pelo caminho. Tudo de bom para vc por ai.

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  2. boa viagem, irei te acompanhar pois pretendo fazer o mesmo percurso...

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    1. Valeu André, o percurso é muito bonito, e o bom que vc já irá saber um pouco sobre ele, de quem o já percorreu. No site do governo de SP tem algumas informações, mas é melhor ver o roteiro por quem o percorreu. Obrigado.

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  3. Grande Julio!

    Que texto emocionante, rapaz. Acredito que sempre que a gente deixa um lugar - seja um albergue ou a casa de um amigo - uma parte nossa continua lá, queiramos ou não. A convivência, os hábitos e costumes fazem isso com a gente. Por isso essa sensação meio nostálgica, meio saudosa, e ao mesmo tempo aquele friozinho na barriga em relação ao inesperado, rs.

    Estou torcendo por você nessa nova caminhada, e confiante de que você vai se divertir bastante, admirar lindas paisagens e conhecer muita gente boa.

    Grande abraço!

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    1. Obrigado Wendell, realmente a caminhada sei que vai ser boa, vou tirar boas lições dela e me divertir também, é claro. Toda despedida é meio complicada mesmo, por isso tento evitar, e dizer um até breve. Bom começo de ano para vc por ai.

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  4. Nosso cérebro é apenas um ponto de intersecção entre dois planos, o físico e o espiritual. Todo e qualquer transtorno psiquiátrico nada mais é que a presença de mentes paralelas à nossa, que vão tomando conta de nossa existência, com um único propósito, por fim a tudo que somos. Mas antes de ceifar nossa vida, impõe todo tipo de sofrimento moral e físico, pois tais mentes sediam todo o sofrimento que assola o ser humano. As alterações químicas inerente a tais quadros nada mais são que o efeito de uma causa espiritual, e não a causa em si.

    Por mais de vinte anos de minha vida, fiz uso de Anafranil-50mg diárias, e Rivotril-2mg, devido a um severíssimo quadro psiquiátrico, caracterizado por depressão profunda, fobia social extrema, alterações cognitivas, compulsões suicidas, alucinações, apatia, inibição psicomotora (efeito zumbi), entre tantos outros. No início do tratamento, me foram receitados Haldol e Lítio (antipsicóticos). Os efeitos de tais medicações são terríveis, e entendi que estava sendo feito de cobaia. Parei de queixar os sintomas delirantes (vozes e compulsões suicidas), ficando condicionado às medicações inicialmente citadas, Anafranil e Rivotril.

    Em meados de 2010, meu corpo físico começou a morrer, quadros de arritmia cardíaca, pois toda e qualquer medicação psicoativa tem efeito negativo sobre o tônus muscular, sendo o coração quase 100% músculo, ele é fortemente comprometido, além do diafragma. Logo, é inevitável a morte por parada cardiorrespiratória.

    Me rendi, então, a única verdade nesse mundo de sofismas, a Palavra de Deus, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, sem adaptações convenientes à natureza humana. Comecei a buscar minha libertação espiritual, coisa que eu não entendia na época, mas é muito fácil Deus trabalhar em nós quando se está morrendo, não questionamos.

    Hoje, sou uma pessoa liberta em Cristo Jesus. Minha vida está sendo refeita pouco a pouco, e em breve estarei casado com uma psicóloga extremamente competente. Tenho a plenitude de Deus em mim, e a manifestação de Seus Frutos: paz, amor, alegria, domínio próprio, benignidade, longanimidade (Gálatas 5). Tenho vida, e o mais importante de tudo, certeza do sentido de minha existência e da salvação de minha alma.

    Deus? Preciso de Deus para curar-me? Os maiores empreendedores do mundo são ateus. O que está errado, então?

    Existe melhor forma de glorificar as mentes que atormentam do que ser ateu? Existe uma relação entre tais mentes (demônios) e o homem. Quem o glorifica, ele fortalece e abre os caminhos (relação de mutualismo, pelo menos por um tempo... Mas para a maioria, a relação é de parasitismo. Um parasita drena as energias do hospedeiro até sua morte, para depois passar para outro hospedeiro. Mas no final, só uma coisa importa, a alma humana.

    Detalhe, só existe um Deus, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. O resto é pura concorrência pirata.

    Ex. talvez... esquizofrênico?

    http://cariad-fobiasocial.blogspot.com.br/

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    1. Obrigado pela visita ao blog. Infelizmente não vai para dar para lhe responder, estou viajando, mas respeito qualquer credo, religião, etc.

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