segunda-feira, 31 de março de 2014

Um caso diferente

  
    Conheci Fidelis no ano de 2004. Quando fui levado para o albergue de Ipatinga, ele já estava lá. Não falava muita coisa, vivia em seu mundo, com a mão no queixo como que buscando lembranças de um passado esquecido.
    - O guarda bateu em Fidélis. - era a frase mais usada por ele.
    Devia ter uns 30 anos de idade e ninguém sabia de onde veio. Apareceu pelado em uma rua de Ipatinga e foi levado pela polícia militar para o albergue. Não dava trabalho. Sabia fazer suas necessidades no banheiro. Sabia também a hora de almoçar, jantar e dormir. Só não era muito chegado em tomar banho. Às vezes, quando ficava mais agitado, brincava de capoeira com qualquer pessoa que via no pátio do abrigo. Também soltava umas risadinhas quando ficava com a mão no queixo. Não sou psiquiatra para dizer qual tipo de esquizofrenia ele tinha. Talvez seria catatônico ou hebrefênico, sei lá. Tenho mais noção da esquizofrenia paranoide, que é a que eu tenho e que é a mais comum.
    Até hoje só vi um catatônico em minha vida. Era como se fosse uma estátua, seu olhar era vago, sem nenhuma expressão no rosto, quase não piscava os olhos. Não respondia a nenhum estímulo externo e ficava com uns movimentos repetitivos com os dedos. Talvez o Fidelis seja hebrefênico mesmo, sei lá.
    Bem, antes de continuar a história de Fidelis, me vejo na obrigação de  contar a minha relação com os abrigos. Talvez os leitores possam estar pensando que eu só vivo nesses lugares, que eu sou um "boca de rango# "e tals sahsuahsaushas
pedreira Prado Lopes, Belo Horizonte
   Até antes de surtar pela primeira vez, no ano de 2002, não conhecia e nunca havia pisado em um abrigo. Sai de casa aos 17 anos e trabalhei por 17 anos consecutivos. Na minha primeira crise, pedi demissão do meu emprego e fui parar nas ruas de Belo Horizonte, numa inútil tentativa de fugir dos inimigos que estavam em minha mente. Fiquei fora da realidade por cerca quatro meses, passando por algumas situações perigosas. Assim que me recuperei, tive que apresentar um endereço na hora de tirar novamente todos os meus documentos que havia perdido durante os surtos. E foi então que conheci o albergue "Tia Branca", situado na época na pedreira Prado Lopes, uma das regiões mais perigosas da capital mineira. Além de estar na crackolândia de BH, o albergue estava perto de favelas onde o tráfico de drogas é intenso.
   O abrigo era muito sujo e deprimente. À noite era fornecida uma sopa em um prato de plástico. Certa vez, o bicho pegou na favela. Tiros de metralhadoras ou submetralhadoras eram ouvidos sem parar, sendo que alguns pareciam ter caído bem perto da porta do albergue. Não fiquei lá mais do que três dias,  raramente voltava para checar as correspondências e verificar se o meu cpf havia chegado. Sinceramente dormir nas ruas era mais tranquilo do que naquele lugar.
    Depois só fui conhecer outro abrigo em Ipatinga. Foi durante o meu segundo surto, por volta do ano de 2003.  Tinha que trabalhar com todas aquelas vozes e pensamentos em minha cabeça, e as minhas energias foi aos poucos se dissipando. Não tomava o haldol receitado pelo psiquiatra, não iria conseguir trabalhar dopado daquele jeito, ainda mais de noite, operando uma mesa de som.
    Quando as minhas energias já estavam no fim, comprei um colchonete e várias pilhas para o meu radinho. Era uma sexta feira e, por volta das cinco horas da tarde, deitei-me em frente a agência do INSS. Não queria chamar a atenção, fazer greve de fome, etc. Simplesmente não tinha mais energia para continuar a lutar e deixei tudo nas mãos de Deus. Não iria me alimentar, havia feito a minha última refeição em uma churrascaria da cidade, como se fosse um condenado à morte. Comprei várias pilhas pois queria ir dessa para outra ouvindo música, achava que isso poderia amenizar o meu sofrimento, pois não tinha muita noção do quanto iria viver sem me alimentar. Bem, o resto da sexta feira e o fim de semana foram tranquilos, só tomei um lanche no domingo, pois um cara me ofereceu dez reais. Mas na segunda feira o bicho pegou. Teve polícia e até ambulância, fora o monte de curiosos que paravam para ver o que estava acontecendo.
    - Pensei que ele estava fingindo que estava louco só para se aposentar!- disse uma funcionária do INSS.
    O policial parecia querer me levar, pois estava discutindo com uma assistente social, afirmando que eu estava me drogando com remédios. Realmente eu estava tomando alguns "diazepan's" durante o dia, para não ficar muito agitado.
    No final das contas a assistente social pareceu ter convencido o guarda de que eu era gente boa. Acabei indo de ambulância para um asilo, já que na cidade não havia um albergue.
    Era dezembro. Me lembro bem. Fiquei três dias nesse asilo consertando os piscas- piscas que serviriam para enfeitar o local e a árvore de natal. Era complicado consertar aqueles enfeites, pois, se uma "lampadazinha" queimasse, outras dez paravam de funcionar também. Então, com toda a paciência do mundo, tirei todas as lâmpadas, testei uma por uma, lixei os seus contatos e refiz tudo de novo. Foi uma terapia para mim, assim não daria tanta importância aos meus pensamentos.
   Era um bom asilo, com boas dependências. Haviam muitas enfermeiras, cinco refeições por dia, enfim, os velhinhos eram bem tratados naquele lugar. Fiz amizade com alguns, eles apenas queriam alguém para conversar, serem ouvidos. Havia uma que era cadeirante, mas muito alegre e comunicativa. Uma outra parecia ter transtornos mentais, pois chorava como se fosse uma criança. Um outro vez ou outra soltava uns berros. Tinha um cara que aparentava ter apenas uns 50 anos, seus cabelos ainda não estavam embranquecidos, mas não conversava com ninguém. Fiquei pensando o que o levou a morar naquele local.
    Mas eu não podia ficar naquele lugar por muito tempo e então fui levado para o albergue de Ipatinga. O negócio era tenso de noite naquele lugar. Muitas brigas já que qualquer pessoa poderia entrar lá, mesmo estando alcoolizado ou drogado. Grande parte do pessoal já tinha passagem pela polícia. Então tratei de ficar quietinho no meu canto para não sobrar para mim. Só houve problemas mesmo quando fui roubado por um usuário de crack. Chamei a a polícia, mas o guarda, ao chegar ao local, disse que, se houvesse confusão todo mundo iria parar na delegacia. Ou seja, tive que deixar passar batido, e ainda aguentar a zoação do cara e não perder a paciência.
    Mas foi assim que conheci Fidelis, ficando cerca de um ano naquele lugar, me tratando no CLIPS, até conseguir o auxílio doença. O tratamento na área de saúde mental em Ipatinga era muito bom, poderia ficar conversando com o psiquiatra durante meia hora, e isso me ajudou e muito na minha recuperação parcial.
    Me lembro de um certo dia em que eu e o Fidelis fomos juntos ao CLIPS. O psiquiatra me receitou a risperidona e um outro remédio para o Fidelis. Só sei que acordei detonado no dia seguinte, o meu amigo também ficou mal, até parou de falar e dar as suas risadinhas. Provavelmente ele tomou também a risperidona.
    Como havia vomitado no jantar, pensei que o psiquiatra também estava fazendo parte do complô para me matar aos poucos, para não ficar muito evidente de que se trataria de um crime. Parei de tomar e fiquei fingindo, guardando o remédio no canto da boca e depois jogando fora.
    Já o Fidelis continuou tomando, pois as funcionárias conferiam se ele realmente havia engolido o medicamento. Estava apático, e, mesmo passando semanas, ele não teve nenhuma melhora. Não se lembrou de nada, não falou nada.
    Depois de passar na perícia do INSS, aluguei um quarto e fui embora do abrigo. Meses depois, fui visitar os funcionários e, ao perguntar pelo Fidelis, fui informado que ele havia sido transferido para um hospital psiquiátrico. Fiquei triste, afinal ele não era agressivo, não fazia mal a ninguém, ao contrário, divertia o pessoal do abrigo com o seu jeito de ser. Provavelmente deve estar tomando um haldol injetável até hoje ou então um outro sossega leão qualquer. Ou seja, ele foi condenado a passar o resto de sua vida em um hospital simplesmente por não saber quem é e por  apenas dizer:
    - O guarda bateu em Fidelis...
   Será que nesse caso vale a pena medicar uma pessoa? O Fidelis não era agressivo, não fazia mal a ninguém, não teve nenhuma melhora com os remédios. Deixou de sorrir, de falar e de brincar de capoeira.

# boca de rango- indivíduo que é comumente visto em lugares onde há doação de alimentos e roupas. Raramente é visto em locais onde é oferecido trabalho.

11 comentários:

  1. ME COMOVEU MUITO A HISTORIA DESSE MOÇO FIDÉLIS ..ACHA QUE ELE ESTA DOPADO MESMO SEM MERECER.. QUE COISA TRISTE .. SABE O ENDEREÇO DE ONDE ELE FICA .. FOI MUITO BOM SABER QUE VC ATE SE PREOCUPOU COM ELE.. MAIS ATE AI.. ACREDITO EU QUE VC JA NÃO PODERIA FAZER NADA MAIS POR ELE.. MEU DEUS COMO PODE A IGNORANCIA DE CERAS PESSOAS SER TÃO ABUMDANTE. I AINDA SÃO CHAMADOS DE PROFISSIONAIS .. AS VEZES ODEIO O QUE CHAMAM DE SIQUIATRA E SICÓLOGA AS VESES SÃO TÃO DESUMANOS . EU ATE DIRAIA CEGOS POR COMPLETO.. NÃO CONSEGUEM VER POR TRAS DE UMA SIMPLIS TRISTEZA .. DESAMPARO FAMILIAR.. ABANDONO FALTA DE AMOR.. QUE MUNDO É ESSE DOMINADO POR ESPERTOS QUE PASSAM ATE 10 ANOS ESTUDANO PRA DEPOIS SIMPLISMENTE INTERNA UM JOVEM COMO ESTE FIDELIS .. E NUNCA SEREM CAPAZ DE O AJUDAREM COMO SER HUMANO QUE ESTE JOVEM É NA REALIDADE..

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    1. Infelizmente não me disseram em qual hospital ou ele foi internado. Realmente não entendo como dão o mesmo medicamento para quem não se lembra do passado e não fala para quem tem um surto psicótico. Obrigado por visitar o blog.

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    2. TUDO AMIGO MUITO TISTE MESMO..CADA HISTÓRIA MAIS IMPRESSIONANTE QUE A OUTRA..ESSE MUNDO DOS SURTO DOS REMÉDIOS ÉMESMO UM ABSURDO DOS ABSURDOS.. TEMOS QUE NOS MONITORA SEMPRE QUE UM MÉDICO NOS PASSA UM NOVO REMEDIO.. SENÃO O BICHO PEGA MESMO E ASSIM PERDEREMOS A CABEÇA DEFINITIVAMENTE,,,CONFESSO QUE EESE MUNDO É MUITO RUIM ..MAIS AINDA ACREDITO QUE NOSSA FORÇA INTERIOR É CAPAZ DE NOS REGENERA E AJUDAR MAIS QUE ESSES REM´DIOS LOUCOS QUE ESSES MEDICOS ALUCINADOS NOS RECEITAN...

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  2. ÉSSA FOTO DO FIDÉLIS É DE CORTA O CORAÇÃO.. ACREDITE SERA? QUE PODEMOS AINDA FAZER ALGO POR ELE JULIO?

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  3. Bem, essa foto não é a do Fidelis não. A postei apenas para retratar um esquizofrênico catatônico. Mas creio que o Fidelis seja hebrefênico. Achei uma crueldade mandarem o cara para um hospital, ele não fazia mal a ninguém e nunca teve nenhuma melhora com os medicamentos e nunca recuperou a memória com nenhum remédio. Então por que não deixá-lo viver com a sua "loucura'?

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    1. Segundo os médicos psiquiatras as vezes internações são necessárias. È possível o doente se recuperar durante a internação.Quando medicamentos e tratamento ambulatorial não resolvem o problema o médico pode recomendar uma internação.Internações podem ser curtas durando entre um mês e três meses.Pessoas que representam risco para elas mesmas ou para terceiros devem ser internadas mesmo que contra sua vontade.A internação é um meio eficaz de tratar doentes mentais.

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  4. meu medo com tratamentos é esse, se meio citalopran me fez perder n sei quantos quilos em 1 mês, 1 citalopran me fazia andar em círculos por 1 hora ao acordar, imagino os mais fortes! mas minha mente esta um inferno, eu não estou nem no estagio "so quero dormir" eu estou no estagio "quero acabar com isso"... estou tentando afastar os pensamentos...vc que já tem mais experiência, julio, acha que é certo eu afastar os pensamentos e ir fazendo as minhas atividades?eu não deixo de fazer meus deveres, apenas que as ideias me incomodam, mas tento afastar elas para continuar. li num livro de uma psiquiatra que quando temos transtornos a mente nos sabota e ficamos com esses pensamentos compulsivos, e que não ajudam, acho que se eu parar de pensar nessas ideias posso melhorar não? por enquanto tomo meio citalopran, não quero testar outros remédios que me deixem mal durante o dia porque não sou uma pessoa que pode se afastar das atividades,eu tenho que me manter na atividade...
    abraços
    fiquei triste com a historia do fidelis, mas reflete bem o que pensam da doença mental há anos: não e serio, e frecura e temos que afastar quem incomoda. se vc quebra a perna, mas esta bem, todo mundo te ajuda; se tem gripe, pode ate faltar o trabalho, mas se a sua cabeça inferniza fazendo pensar o dia inteiro em suicídio, tem ideias compulsivas, não consegue se concentrar, fica embotado, não consegue sorrir e sentir prazer na
    vida, é um fresco.

    quanto a catatonia, tem um vídeo no youtube, e não acho que e o caso do fidelis, porque a pessoa fique 90% do dia parado,e da explosões de tempos em tempos (um professor de psiquiatria me disse isso)

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    1. ACREDITO QUE NO FUNDO NO FUNDO TODA A HUMANIDADE CAREÇE MESMO E DE ATENÇAO E CARINHO E PRINCIPALMENTE AMOR( AMOR AO NASCER-AMOR AO CRESCER-AMOR AO SE TORNA UM JOVENZINHO-AMOR AO ENFRENTAR OS PRIMEIROS OBSTACULOS DA VIDA-AMOR AO CONHECER A PRIMEIRA PESSOA EM POTENCIAL A PASSAR A VIDA COM ELE OU ELA-AMOR AO ENFRENTAR PROBLEMAS NA VIDA ADULTA DIGO TBM APOIO FAMILIAR EM LONGA ESCALA..AMOR AO ENVELHECER ..RESUMINDO TUDO É FALTA DE AMOR CARINHO E SINCERIDADE...SE O MUNDO NÃO FOSSE CARENTE DE AMORRRRR NÃO EXISTIRIA TANTOS PROBLEMAS COM PESSOAS MARAVILHOSAS.. QUE EXISTE NESTE PLANETA TERRA O QUAL HABITAMOS...AMOR É A PALAVRA CHAVE..AFINAL OS DOIS PRINCIPAIS MANDAMENTOS BIBLICOS ((((É AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS))))/((((AMAR AO PROXIMO)))ISSO SÓ EM ANDAMENTO RESOLVERIA TUDO TUDO...

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    2. Em relação aos pensamentos, se você consegue parar de se fixar neles, é o melhor a se fazer, sem dúvida. E ocupando a nossa mente isso se torna mais fácil, então claro que você deve pensar em continuar com as suas atividades. Depois que me aposentei fiquei meio deprimido no início, agora estou tentando fazer algo de produtivo. Continue sim com o seu trabalho. O Fidelis realmente é um caso triste, ele não incomodava ninguém lá no albergue, e, como não havia se lembrado de nada com os medicamentos, não entendi o motivo de continuarem dando remédios para o cara. e depois o internando em um hospital psiquiátrico, onde provavelmente vai viver dopado o resto de sua vida, já que não consegue se expressar. Realmente ele não parece catatônico, parece ser hebrefênico, por que dá umas risadinhas de vez em quando, ou então teve um problema neurológico qualquer, sei lá.

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  5. Você já escreveu algum livro ?

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    1. Sim, já escrevi, mas não foi publicado não, pelo menos por enquanto. Eu o distribuo no formato PDF mesmo. Caso se interesse é só seguir as instruções do lado direito da página, no alto.

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