sexta-feira, 2 de maio de 2014

E agora Júlio? parte 2

A noite
23/04/2014
praça do Largo da Concórdia

    Enquanto esperava a salvadora kombi, a praça do Largo da Concórdia foi se esvaziando aos poucos até a noite chegar e deixar tudo meio escuro. As lojas de roupas do Brás e a maioria das lanchonetes fecharam suas portas. Pessoas de rua, não sei se sob o efeito de drogas ou álcool, perambulavam pela praça. Alguns paravam para conversar comigo, e falavam algumas coisas sem sentido. Estava tranquilo por estar perto de um posto policial. De repente chega um cara careca, também na espera da kombi. Senta-se ao meu lado e começa a conversar comigo. Tem 38 anos mas aparenta bem mais. Me diz que havia ficado cerca de 12 anos preso no Carandiru. Comenta que não deveriam ter construído um parque no lugar do presídio, e sim uma cruz gigante em homenagem aos mortos.
     O cara muda o tom da conversa e começa a falar sobre os seus "feitos": havia matado umas 12 pessoas, mas sentia que Deus iria lhe perdoar pois nenhuma de suas vítimas era trabalhador. Disse-me também que certo dia ele e um amigo enfrentaram vários policiais e que saíram ilesos. Bem, não é a primeira vez que um morador de rua para perto de mim e começa a falar sobre suas "façanhas". Claro que não duvido de nada, apesar de pensar que, por causa das condições físicas, eles não são assim tão capazes de brigar com várias pessoas ao mesmo tempo. Mas finjo acreditar em tudo, para evitar discussões. Sinto que eles dizem essas coisas para impor o medo e o respeito. Acho que na rua todo mundo tem medo de todo mundo. Não basta ser o mais forte nas ruas. Mais cedo ou mais tarde o cara "boia"(dorme). E é ai que acontecem a maioria dos crimes contra moradores de rua, geralmente por vingança. 
    O tempo passando e mais pessoas chegaram à praça: Um boliviano que de dia trabalha em uma obra, Um nordestino engraçado e um outro cara do interior de São Paulo, que trabalhava como ajudante de pedreiro. Já um outro que também havia chegado não dizia muita coisa. 
    Por volta das oito da noite o termômetro marcava 22°C, mas, por causa do vento, a sensação era de bem menos. Alguns tomavam cachaça para espantar o frio, e, para minha sorte apareceu um grupo de pessoas nos oferecendo chocolate quente e pão com mortadela. O papo entre o pessoal girava em torno das drogas, cadeia, a situação de rua, etc. Converso com o boliviano sobre seu país, e ele me diz que é de Potosi, que deve ser a cidade mais alta da Bolívia, com altitude acima dos quatro mil metros. Gosto muito da música andina, com aquelas flautas cheia de caninhos...
flauta andina

lago Titicaca, na Bolívia, é o maior do mundo

    E então depois de muita conversa, a tão esperada kombi aparece por volta das dez e meia da noite. Já estava pensando em arrumar alguns pedaços de papelão, para dormir na praça. Mas não estava gostando muito dessa ideia, já que havia deixado o saco de dormir em BH, já que a minha intenção inicial em São Paulo era apenas percorrer o Caminho dos Jesuítas. 
    Fomos levados para um pequeno albergue na Mooca. Era simples, mas tudo estava bem limpo e organizado. Roupas de cama e cobertores estavam limpos e cheirosos. Não jantei, só queria dormir, pois tínhamos que acordar às seis da manhã. Mas a galera reclamou que o marmitex estava com o rango meio azedo. 

Sorte?
24/04/2014
    A noite foi super tranquila no albergue, não tinha muita conversa. Só o intenso movimento de carros na radial leste é que atrapalhava um pouco o sono, mas deu para descansar. 
    De manhã, já na rua, muitas dúvidas em minha cabeça. Ficar nessa de todo dia nesta situação seria  um pouco desgastante. Teria que sair às seis da manhã e depois ir para uma praça e ficar a espera da kombi, por volta das dez da noite. 
    Pensei em voltar para BH, e continuar na rua, por ser um lugar que conheço e por isso consigo dormir. Mas, como já disse, pode ser uma atitude precipitada, pois o papo que rola na capital mineira é de que os moradores de rua serão "convidados" a se retirarem  das ruas, para dar uma camuflada na cidade quando os gringos chegarem. Não é a toa que a lei sobre a internação compulsória foi aprovada às vésperas da copa. 
    Poderia também continuar as minhas andanças, mas a coisa não é tão simples assim. Mesmo dormindo nas barracas, as despesas existem. Às vezes tenho que pagar uns dez reais para tomar um banho em um hotel, quando não consigo uma outra alternativa, como uma cachoeira ou então entrar de gaiato nos ginásios poliesportivos das cidades. shasuasuashausas
    A solução é tentar uma vaga fixa em um outro abrigo, apesar de estar sendo muito difícil de se conseguir isto nesta época do ano. Vou então até ao CREAS do bairro tatuapé e o máximo que consigo é um encaminhamento para uma pernoite apenas, em um abrigo no mesmo bairro. 
     Foram três meses sem andar com a mochila nas costas. Quando estamos com ela todos os dias, a sensação é de que ela é bem mais pesada... 
    Chego no abrigo por volta das duas horas da tarde, pois queria conversar com a assistente social. Sou atendido por volta das seis horas da tarde. Entro na recepção e me misturo com um pessoal que havia entrado um pouco antes, em uma kombi. Não sei se foi por causa disso, mas o assistente social, depois de uma longa entrevista me deu uma vaga fixa! Que alívio! Será que ele pensou que eu estava junto com o grupo ou resolveu me ajudar, ao ouvir a minha explicação sobre o meu projeto de pagar os empréstimos?
Não sei,  mas ele me deu um mês apenas, para ser avaliado. Acho que é pelo fato de ser esquizofrênico, só pode, já que outros ganham mais prazo. Mas continuarei dizendo a verdade, que sou aposentado e que tenho um transtorno mental que é bem mais comum que a maioria pensa, e que não é por causa desse transtorno é que seria um monstro, sei lá. Só penso em pagar a minha dívida e alugar um cantinho, ver a minha TV, os filminhos baixados na net, e sair do quarto só quando sentir vontade, Isso não tem preço, muitos pensam que fico no albergue só para comer e juntar dinheiro, mas ter a liberdade é algo que para mim é sagrado. Viver em albergues, por melhor que seja, deve ser algo parecido com o regime semi aberto de um condenado pela justiça. 

    Música Andina

6 comentários:

  1. Olá Julio tudo bem?
    Meu nome é Daniel, e gostaria de conversar mais com você, estou passando por problemas emocionais, tudo devido à uso de drogas. Você tem Facebook?
    Obrigado

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    1. É só clicar em contato, lá tem o link do facebook. Obrigado pela visita ao blog.

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  2. ola julio o laga titicaca é realmente o mais grande e tbm o mais alto do planeta... ele desagua no mar do chile..estive por la em 94 bolivia chile peru equador caribe,,etc é tudo muito lindo mesmo...e quanto a vc cuide--se o quanto antes te estabiliza sera melhor pra ti...digo o quartinho a tv... que vc deseja...tbm tenho esquizofrenia..no entanto sou calmo...tbm sou aposentado....muito bom ate o proximo poster seu....

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    1. Obrigado por participar do blog. Eu me sinto estabilizado emocionalmente, só falta pagar os empréstimos com o INSS e pelo menos juntar a grana para a tv. O lago me parece ser bonito mesmo, também faz parte do Peru, deve ser muito bonito mesmo, pelas imagens.

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  3. tem alguem que encaminha morador de rua para algum trabalho

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    1. Olá, geralmente as assistentes sociais dos abrigos costumam dar uma força, mas não chegam a encaminhar. No arsenal da esperança, em São Paulo, tem cursos e às vezes alguns são encaminhados para alguns, serviços, geralmente de auxiliar de limpeza nos metrôs.

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