quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Divagações esquizofrênicas 17


ainda existe esperança... 
  Outro dia desses, no local onde estava morando, surgiu um problema comum em lugares onde são alugados vários quartos e se tem uma cozinha coletiva: alguém estaria supostamente afanando comida alheia da geladeira.... Os "maconhistas" do local chegaram a jogar algumas indiretas que o esquizo seria o principal, ou melhor, o único suspeito desses roubos.
    Na verdade nem entro na cozinha, tenho o meu frigobar que ganhei de um amigo. E também não uso o fogão, afinal a única coisa que sei fazer é o tradicional ovo cozido, que aprendi a fazer depois de consultar o google sobre o tempo de cozimento dessa rica fonte de proteínas que agora foi abolido pela comunidade médica. Antigamente tinha pavor só de pensar em comer ovo cozido, pois a conversa na época era de que apenas uma gema continha colesterol para mais de dois dias de que o nosso organismo precisa. E, como "bom" hipocondríaco que sou me limitava a comer uns dois ovos por mês, no máximo.
    Mas, voltando ao assunto do suposto sumiço dos alimentos da geladeira, confesso que no início fiquei um pouco chateado com essa história e desconfiança de minha pessoa. Afinal eu era a pessoa que tinha a menor renda naquele local. Mas logo no dia seguinte a proprietária do imóvel apareceu e reiterou a sua confiança na minha pessoa. Eu então afirmei que isso era coisa da "oposição dos maconhistas" que estavam tomando conta do local. Ela, imediatamente me pediu nomes e me disse que iria imediatamente pedir que procurassem outro local para morar... Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz pela confiança e triste por ter que enfrentar mais essa situação envolvendo usuários de drogas. Minha consciência iria pesar, afinal tinha um maconheiro que dependia daquele local, pois ele pagava o aluguel em troca de alguns serviços para a dona do imóvel. E também outros maconhistas que não tinham renda também moravam lá. Resolvi me mudar para um local mais tranquilo e com pessoas mais responsáveis e que trabalham. Gostaria de reiterar que não sou moralista, cada um faz da vida o que bem entender, desde que não prejudique o próximo. No meu caso, os maconhistas estavam prejudicando o meu sono, pois eles queriam impor um horário não muito comum, que era de dormir por volta das duas horas da madrugada e acordar depois das dez horas da manhã...
     Isso sem contar o som alto e as baixarias que citei na postagem "Meus vizinhos funkeiros" . Como sempre paguei meu aluguel religiosamente em dia e fui um inquilino exemplar, me vi no direito de fazer reclamações sobre o comportamento desses maconhistas... E aí foi como mexer em um vespeiro, mas não tenho medo desse tipo de gente que não é chegada ao trabalho. E, como eles não tinham nenhum argumento contra a minha pessoa, o jeito foi começar a reclamar de um suposto sumiço de alimentos da geladeira.... O engraçado é que só sumia alimentos dos usuários dessa erva danada que só traz confusão. O ambiente naquele lugar era ótimo até a chegada do primeiro maconheiro. Quando saí do local eram três, fora os que vinham de fora para usar a maconha fedorenta dos inferno...
     Então me lembrei da época do meu primeiro surto psicótico grave, em que fiquei morando nas ruas de "Beuzonte" por cerca de cinco meses. Estava pesando 25kg a menos, quando comecei a voltar à realidade. Estava com uma mania de perseguição absurdamente exagerada, e a minha principal preocupação era fugir dos meus "inimigos imaginários"... Se engana quem pensa que toda pessoa que tem esquizofrenia cria um amigo imaginário e fica conversando com ele toda hora....
     Mas nos surtos a sensação que tive é a de que a região do cérebro responsável pela fome ficou meio desativada ou até mesmo desligada, sentindo apenas a necessidade de beber muita água.  Mas em compensação parecia que a região do cérebro responsável pela audição ficou muito mais ativa, daí talvez venha uma provável explicação para as alucinações auditivas.
Durante o surto a região da audição parece estar mais ativa... 
    O pouco que conseguia comer acaba vomitando pois logo vinha uma voz afirmando que a comida estava envenenada. Foi assim quando encontrei um pé de manga na BR e comi quatro mangas deliciosas, quando comprei um biscoito recheado com coca-cola e  também quando um policial rodoviário me ofereceu um marmitex. É muito estranha essa situação,  a gente fica vários dias sem se alimentar, e aparece um marmitex e sem receio jogo o alimento no lixo. E não lembro de ter sentido o meu estômago roncar...
    Mas não saí do surto de uma hora para outra, foi um processo bastante demorado e que demorou alguns meses até voltar a trabalhar novamente. Mas a sensação de fome voltou de uma hora para outra, era como se a região do cérebro responsável pela saciedade estivesse desativada e por algum motivo foi ativada, assim de um dia para outro. Estava no meio do mato quando isso aconteceu, e não havia nada para comer, só umas goiabinhas ainda bem verdes...
    Mas, por causa da mania de perseguição absurda não saí do mato, mesmo com aquela fome toda. Fiquei por um bom tempo imaginando tudo de gostoso que havia comido em minha vida: as lasanhas de minha avó, os deliciosos caldos de feijão vendidos na praia de Boa Viagem, no Recife, e por ai vai... 
    Somente quando dois urubus ficaram me observando por mais de uma hora que resolvi sair do mato, estava tão fraco que provavelmente não iria conseguir me defender caso essas aves resolvessem me atacar.  Naquele momento já estava um pouco menos paranoico e as vozes já haviam sossegado Acredito que a debilidade física meio que serviu como um sossega leão para mim. 
     Já no centro, tive uma dificuldade imensa ao passar na frente das padarias. Tinha que fazer um enorme esforço para não "pegar" aquelas tortas maravilhosas do balcão. Uma vez vi uma mulher fazendo churrasco na rua e pensei que ela fosse permitir que eu pegasse um para matar a minha fome. O resultado é que, além de não comer churrasco, quase fiquei sem dedo, pois ela não hesitou em se proteger com uma faca que parecia estar bem afiada. 
      Era triste e atentador passar nas padarias. Uma fome tremenda, o estômago roncando, mas não tive coragem nem de pedir, pois é muito ruim ficar recebendo "nãos" o dia inteiro. 
    E também não pedia nada pelo simples fato de imaginar que as pessoas que estavam ao meu redor já sabiam o que eu estava pensando... Às vezes ficava lendo cartazes e outdoors só para "afugentar" as pessoas que estavam invadindo a minha mente. 
    A solução que encontrei para matar a fome foi comer o lixo de uma padaria no Barro Preto, um bairro aqui de BH, situado perto do centro da cidade. Todos os dias, por volta das sete horas da noite a funcionária colocava o lixo no passeio para que o caminhão recolhesse...
    E então lá ia eu, na esperança de encontrar algo para matar a minha fome. Ia rasgando os sacos, e separando os pães, bolos e salgados, que, para a minha sorte, não estavam estragados. Na verdade estavam um pouco ressecados, pois o controle de qualidade da padaria parecia ser bem rígido. Depois de pegar os alimentos, fechava novamente todos os sacos e deixava o local como havia encontrado. 
    A dona da padaria parece que até gostou da minha atitude, pois certo dia encontrei um sanduíche de carne, recém preparado no meio daquele lixo todo.... E, com o passar dos dias, notei que os pães e os bolos estavam cada vez mais novos e macios. 
    Em uma dessas minhas idas à padaria, cheguei até a ganhar um bolo de aniversário. Mas não era a data do meu nascimento, ao lado da padaria havia uma confeitaria, e o pessoal de lá me deu um bolo que parece que deu errado, ficou um pouco torto, sei lá. Só sei que estava uma delícia e com o recheio de doce de leite.  O bolo só não estava decorado, o que achei bom, pois o glacê geralmente me dá uma diarreia, e, morando nas ruas é o que menos queremos que aconteça. 
     Depois da padaria ia para o prédio do Instituto Estadual de Florestas, para dormir debaixo da marquise do prédio, que deveria ter uns 20 andares. O segurança me tratou muito bem durante o tempo todo que fiquei por lá, acredito que foi a primeira pessoa com quem conversei de verdade depois de voltar a realidade no meu primeiro surto psicótico grave. Costumo dizer que a solidariedade das pessoas foi o meu melhor antipsicótico naqueles dias. O segurança sempre reservava alguns sanduíches de mussarela e presunto que era oferecido aos funcionários do IEF. A única exigência que ele fazia era para que deixasse o local limpo. 
    Me lembro que, certa vez, logo no início da minha volta ao centro de Belo Horizonte, parei em frente a uma lanchonete. A fome estava de doer o estômago, e então tentei pedir com o olhar alguns doces que estavam em um recipiente. Tinha a quase certeza absoluta de que podia me comunicar com as pessoas telepaticamente. Tentei decifrar os gestos do dono de bar, e arrisquei a colocar a mão no pote. Ele não disse nada e continuou a lavar os copos na pia Esse foi o sinal de que poderia pegar algumas cocadas. Então, calmamente abri o pote e peguei quatro cocadas. Fechei normalmente, e, de repente, tive a sensação de que estava sendo observado. Quem nunca teve essa sensação? Parece que é algo que dá na região da nuca. E o engraçado é que geralmente vamos de encontro a alguém que realmente está nos olhando. Essa sensação de estar sendo observado não seria algo relacionado à psicologia (paranoias) e sim algo mais ligado ao sexto sentido mesmo...

    Mas realmente do outro lado da avenida haviam três pessoas em frente de um carro de uma emissora de TV (foi possível ver o logo da "poderosa"...). 
    O cara do meio estava segurando uma câmera e a apontava em minha direção, ou seja, provavelmente estava me filmando. Então saí correndo e entrei em uma garagem, onde havia um carro aberto e com a chave na ignição. Por um momento cheguei a pensar em entrar naquele veículo e sair fugindo daquele lugar, mas não estava totalmente fora da realidade, e sabia que dirigia mal pra caramba. E como matar a fome era a prioridade naquele momento, comi rapidamente aquelas quatro cocadas brancas e depois peguei uma mangueira e enchi a minha barriga com água, para aumentar ainda mais a  sensação de saciedade! Nunca na minha vida as cocadas foram tão deliciosas! Me lembro até hoje do alívio que senti depois que enchi a minha barriga. 
    E assim, com o meu bom comportamento, sendo um bom mendigo, fui muito ajudado pelas pessoas do bairro onde estava e engordei 20kg em apenas um mês! Não tenho vergonha de dizer que fui um mendigo, teria vergonha de dizer que fui um traficante, um ladrão ou coisa do gênero...
    Não posso dizer que foi um período feliz de minha vida, mas tive muitos momentos de felicidade durante esse momento que morei nas ruas. Conheci muita gente bacana, o que amenizou e muito o sofrimento que é não ter um local para viver em paz. 
    Voltando ao assunto inicial do sumiço dos alimentos da geladeira, me pergunto: se não roubei nem no momento mais difícil de minha vida, por que roubaria agora? 
    Felizmente a proprietária do imóvel me conhece a mais de um ano e não deu atenção à queixa dos "maconhistas", principalmente de uma estudante que era sustentada pelos pais. E o engraçado é que só sumia alimento da galera da erva danada... E, para completar, como já relatei,  ela ainda me disse que eu poderia dar os nomes dos maconhistas que estavam me incomodando, e que iria mandá-los todos embora. Não é por nada, mas sou um bom inquilino: não ligo som alto, não gosto de discussões e sempre procuro pagar religiosamente em dia. Não devo as pessoas, somente ao bancos, que não gostam muito de negociar os juros abusivos. O único "defeito" que tenho é a de ser calado.. Digo defeito pois as pessoas parecem estranhar uma pessoa extremamente reclusa, e acham normal as fofocas e outras maledicências que a  língua pode provocar em um ser humano. Mentir é normal, falar mal dos outros também. Ficar calado é estranho, é loucura... 
    Mas preferi sair daquele local, que no início não havia um maconhista e hoje tem metade dos moradores usando a erva. Não sou totalmente contra quem fuma um baseado e fica na sua, o que complica é que alguns ficam muito bobos e agitados, parecendo que usaram cocaína ou outro estimulante, sei lá. Se fossem "cachacistas" que estivessem perturbando o ambiente estaria relatando aqui no blog sem maiores problemas....
Nem os traficantes estão aguentando certos "maconhistas"...

     Por mais que os maconhistas dessem queixa do sumiço dos alimentos, a proprietária nem me chamava  a atenção. E um deles chegou ao cúmulo de afirmar que alguém havia roubado 200 reais do quarto onde estava.. O engraçado é que não houve arrombamento e ele nem chamou a polícia... A alegação dele é que 200 reais não é nada... Vá entender a cabeça desses caras... 
     Mas, é aquele velho ditado, a mentira tem pernas curtas. Às vezes ela anda um pouquinho e faz alguns estragos na vida da pessoa, mas no final a verdade sempre prevalecerá.

Vamos tomar cuidado com as "dorgas"...

2 comentários:

  1. Sou usuária de maconha e entendo seu ponto de vista. Mas quanto ao seu relato de viver nas ruas, realmente aperta o peito imaginar alguém passando por isso. Seus relatos são preciosos.

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    1. Olá Beatriz.
      Acredito que às vezes alguns comentários meus sobre a maconha possam levar os leitores a imaginarem que sou uma pessoa preconceituosa, ainda mais nos dias de hoje em que tudo está polarizado: ou você está de um lado, ou de outro. Mas não é bem isso o que penso: é que como geralmente moro em locais que alocam quartos, onde existem algumas regras, principalmente na questão do volume do som, e o horário também, pois tem o pessoal que tem que acordar cedo e tudo mais. Mas sei que existem usuários conscientes e educados, e nessa situação não me sinto no direito de me intrometer na vida alheia.
      Obrigado por visitar o blog e o seu cabelo é muito bonito.

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