Pela terceira vez volto a este abrigo em Belo Horizonte. A capital mineira tem apenas dois albergues, que é um número considerado baixo, para o tamanho da cidade. Em São Paulo, pelo que deu para sentir, deve ter mais de vinte lugares para ficar em caso de necessidade.
Na primeira vez, em abril do ano passado, fiquei apenas alguns dias, para me recuperar de uma tendinite que tive na minha primeira viagem,
caminho do Padre Anchieta. Estava numa boa, curtindo a praia no simpático balneário de Barra de Jucu, quando bati o calcanhar em uma pedra no fundo do mar. Fui teimoso e percorri os 75km restantes manquitolando mesmo. Me aconselharam na praia a procurar uma UPA, mas todo mundo sabe como é o atendimento nestes lugares... Só procuro a UPA quando o negócio não tem jeito mesmo. Se já é difícil andar com a mochila em plenas condições físicas, imaginem machucado.
A segunda vez foi depois da viagem pelo
caminho velho da estrada real. Foram 23 dias e 710km de muitas andanças e de muita ralação. Depois da viagem de volta de ônibus, meus pés ficaram muito inchados. E, além de tudo, estava muito cansado. Esse negócio de montar e desmontar barraca todos os dias cansa...
Agora volto depois de oito meses em São Paulo. Muitas saudades de BH: das vitaminas consistentes e geladinhas, dos preços camaradas, do clima, do trânsito um pouco menos complicado. Do metrô com pessoas menos estressadas e mais calmas.. E, claro saudades do parque onde costumo descansar(de que que eu não sei...)
Tive muitas incertezas na volta, já que poderia ficar mais dois meses no abrigo em São Paulo. Não sabia se voltaria a ser aceito no abrigo de BH, pois não era a primeira vez que o procurava. Tive que pegar um encaminhamento na rodoviária, mas deu tudo certo. Acabei sendo aceito, ser bom comportado vale a pena sim e tem suas vantagens, que, se não são imediatas, são bem mais lucrativas. O ambiente neste abrigo é tranquilo, às vezes costuma ficar não muito bom, e é preciso muita paciência e tranquilidade para não fazer e falar algo de errado: é um cara que fura a fila na hora do banho ou do jantar, é gritaria até tarde da noite, funk rolando naquelas caixinhas de se pendurar no pescoço e por ai vai. Às vezes ouço uma indireta de caras criticando a minha situação de aposentado, mas faz tempo que deixei de ligar para o que as pessoas pensam a meu respeito. E o papo não costuma ser muito sadio: drogas, crimes, caras contando suas proezas sexuais e detalhes de suas aventuras amorosas, etc. Homem tem muito disso, em uma rodinha costuma contar como foram suas transas. Contam quantas vezes conseguiram chegar lá e tals... Mas, para mim isso não quer dizer muita coisa, se é que o cara não está mentindo. Me pergunto se ele por acaso sabe se ela chegou lá também, se é que chegou, devido ao egoísmo. Mas chega desse papo de sexólogo, afinal, quem sou eu para falar sobre o assunto, já nem sei se meus preservativos estão com o prazo de validade vencido, pois as embalagens estão muito desbotadas.
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olhem o estado, mas não é por que eu sou descuidado, é pela falta de uso mesmo... |
Mas, voltando ao assunto abrigo, gostaria de dizer para as pessoas não generalizarem e não discriminarem quem mora em um lugar desses. A maioria realmente está em dificuldades e querem mudar de vida, outros, por vários motivos, não conseguem um trabalho. Muitos trabalham e são do bem, mas uma minoria apronta e ai fica o preconceito. É aquele negócio, não é legal o preconceito, mas, por causa dessa minoria não é aconselhável dar muito mole ao pessoal Roubo de celulares no albergue é muito comum, principalmente de madrugada. O cara dorme com o celular na cama e ai já era. Já até roubaram o meu relógio do Paraguai que me custou dez reais! Fui ao banheiro de madrugada e nem imaginei que alguém iria querer um relógio xing ling, com a lente trincada e todo colado. Então fui ao banheiro me aliviar e deixei o relógio na cama mesmo. E adivinhem o que aconteceu? Isso mesmo, um @#$%& roubou o meu xodó, meu companheiro de andanças! Há um ano que eu o comprei e fiquei chateado, cheguei a oferecer cinco reais para o meliante me "vender" o relógio, mas não tive sucesso em recuperá-lo. Acho que tem gente que rouba por prazer mesmo. Muitos tem problemas com drogas e álcool e por isso comentem esses pequenos delitos, outros querem realmente sair dessa situação, mas não encontram forças e nem ajuda suficiente. Mas muitos também estão acomodados com essa história de albergue. Eu mesmo confesso que fiquei um pouco acomodado, poderia ter juntado uma boa grana para pagar os empréstimos e comprar as coisas que quero em menos tempo. Mas creio que será a última vez.
Mas ainda nem sei se poderei permanecer no abrigo, pois ainda não conversei com a assistente social. Quando a vejo nos corredores, abaixo a cabeça e faço cara de sério, para ela não me reconhecer. Mas, se na conversa ela não me der o prazo suficiente para concluir o meu projeto, voltarei a morar na minha humilde barraca de camping. Antes meus projetos eram outros, queria se alguém na vida, ter coisas, possuir coisas, mas hoje, depois dos surtos meu projeto principal é ter paz e ficar em meu cantinho mesmo.
Meu projeto é esse: voltar a alugar um quarto, depois de quase dois anos. Mas antes tenho que comprar as coisas que tinha antes de sair viajando por ai: um notebook, uma TV, um home theather e um frigobar. O note já comprei, e quase me roubaram em São Paulo. Levei algumas pancadas, mas não dei mole para os três meliantes que me cercaram. Mineiro é pacífico, mas não costuma afinar não...
Já a TV e o home theather provavelmente irei comprar no próximo pagamento. A Dilma fez uma gracinha este ano(por que será?) e antecipou o 13° da galera aposentada. Para mim foi ótimo, vai ser alguns dias a menos no abrigo ou nas ruas. Mas se a "presidenta" pensa que conseguiu o meu voto... Aliás, se a Dilma fosse como eu, seria uma caminhante ou uma caminhANTA?
Aliás, muitos albergados estão preocupados com as eleições, a maioria está com a Dilma, por causa do bolsa crack, quer dizer, bolsa família.
O frigobar fica para o próximo mês. Não tem como pagar aluguel e adquirir certas coisas. Chega a ser uma quase obsessão comprar os eletrônicos que tinha quando morava em Ipatinga. Já perdi a conta de quantas vezes sonhei acordado, me vendo assistindo uma TVLCD de 32 polegadas ou curtindo um som no home theather. É mesmo uma obsessão: não quero o som comum, estéreo, tem que ser home thather! É uma sensação muito boa ouvir um show, parece que estamos no meio da plateia, com as caixas espalhadas pelo quarto. Coloco duas atrás da cama e as outras quatro perto da TV. O som do público sai nas caixas traseiras, e os instrumentos, juntamente com outros efeitos(ecos, reverber) saem "dançando" pelas caixas.
Já o note é onde encontro os meus amigos, e onde aprendi muitas coisas, através das pesquisas, inclusive sobre a esquizofrenia. Aprendi também que não devemos nos impor limites, pois havia colocado em minha cabeça que nunca iria aprender a mexer em um computador e muito menos digitar sem olhar para o teclado. Já o frigobar é uma questão de saúde mesmo, onde guardo as frutas e verduras, além de yogurte. Tomo também um produto natural chamado Enziplus, que me dá um bem estar danado, com a sensação de que tudo está funcionando perfeitamente em nosso organismo. E essa boa sensação física acaba refletindo na parte mental, pois creio que está tudo muito ligado.
No início me senti deslocado no albergue, apesar de ser a terceira vez que vou para lá. A turma havia mudado. Encontrei alguns que ainda estão por lá. Fiquei feliz por revê-los, mas de um certo modo triste também, pelo fato de ainda não terem saído dessa situação. Morar em albergue é um pouco complicado: fila para entrar, para tomar banho, para guardar a mochila, pegar a toalha, jantar, devolver a toalha, etc... A conversa do pessoal às vezes não é das mais sadias. Não me considero melhor nem pior do quem está por lá, mas me interesso por outros assuntos. É um sacrifício ter que ouvir tanta coisa que não nos interessa e que não achamos graça nenhuma. Mas esse sacrifício vai valer a pena, meus empréstimos estão quitados e, na ponta da caneta, vai dar para me virar e pagar um aluguel. Estou há muito tempo sem ficar em um cantinho, tirando às vezes em que ficava no meio do mato nas andanças...
Já me perguntaram e creio que muitos perguntam por que eu não trabalho. Oras, se eu tivesse condições de trabalhar, eu não teria me aposentado. Adorava o que fazia, viajar e trabalhar com sonorização para shows, conhecer lugares novos e pessoas, mas hoje em dia isso não dá mais para mim. Aliás, o convívio social não é para a minha pessoa, tenho que ser realista, creio que dificilmente serei a mesma pessoa despreocupada de antigamente. Não creio que um medicamento irá mudar a minha mente.
Morar em um albergue é como estar preso em um regime semiaberto, onde temos que nos apresentar todos os dias para dormir no local. Mas o pior de tudo mesmo é o preconceito: andando de mochila, e não muito bem arrumado, somos muito discriminados, principalmente no bairro. Eu ligo muito para isso, infelizmente. Sempre procurei ser um cara correto e ser confundindo com um meliante me deixa um pouco irritado, às vezes. Outro dia machuquei o meu dedão do pé e foi uma dificuldade para conseguir duas pedras de gelo no bairro onde se situa o abrigo. Em uma sorveteria, um cara, ao me ver, disse:
- Hoje o ambiente não tá legal não...
O engraçado é que provavelmente ele não deve dizer isso para os traficantes que moram naquele bairro...
Eu entendo o lado de quem mora perto de um abrigo. Infelizmente uma minoria de usuários do serviço ficam na porta o dia inteiro, alguns aprontam, brigam, chegam a urinar nos postes. Eu mesmo não queria um abrigo em frente de minha casa. Mas sair discriminando todos ai já é um pouco de maldade.
Na internet já sofri um pouco de preconceito por morar na rua, mas não preciso esconder nada de minha vida. Me considero um cara vitorioso por ter sobrevivido a tudo o que passei. Claro que não teria conseguido passar por todas aquelas situações complicadas sem a ajuda das pessoas. Foi por esse motivo que resolvi escrever o livro: queria contar que ainda existem pessoas boas neste mundo. Não disponibilizo o livro gratuitamente pois sonho um dia em vê-lo publicado. Se puder ganhar alguma grana com ele, ótimo, se não der, tudo bem. Tenho consciência que livro no Brasil para se ganhar dinheiro tem que vender bastante mesmo. Mas o importante é que esse história de sobrevivência e aventura foi registrada a tempo, pois consegui me lembrar da maioria das coisas que aconteceram antes, durante e depois dos surtos. É um engano acreditar que todos os portadores esqueçam dos fatos ocorridos durante os surtos, pois o que acontece é que ficamos fora da realidade, e não desmemoriados. Não perdemos o raciocínio, apenas pensamos baseados na realidade que se apresenta em nossa mente.
Creio que vou ficar mais algum tempo no abrigo, ou nas ruas. Mas tenho que fazer isso. Já estou cansado desta vida. Parece que é uma vida boa, andar por ai sem destino, sem ninguém para nos mandar fazer isso ou aquilo. Mas tem a questão da higiene, do sono, da violência. Como costumo ficar praticamente 23 horas no dia no local onde moro, tenho que ficar mais um tempo nas ruas e comprar o restante do que quero ter. Não adianta nada morar em um quarto e não ter nada o que fazer. Acho que provavelmente piraria se fizesse isso.
Morar no abrigo é a melhor opção no momento. Dá para ficar no parque durante o dia, que é muito tranquilo e cercado por enormes árvores, e de manhã o canto dos pássaros é um bom calmante.
Às vezes, um cara do albergue, que afirma ter nascido na Nigéria vem conversar comigo. Ele é psicótico também, mas não é agressivo. Vive fazendo previsões de catástrofes, e diz algumas coisas sem sentido, mas ele não me incomoda, a não ser quando estou querendo ouvir música. Gravei um pouco de suas previsões, claro que, por motivos óbvios não gravei seu rosto, gravei o vídeo com a câmera do celular virada para o alto. Acho uma falta de ética e consideração gravar uma pessoa que não está em plenas faculdades mentais.
E tem também o Chimbinha, um cachorro vira latas que mora no parque. Fiz apenas um carinho nele e agora não desgruda de mim. Não me deixa brincar com os outros cachorros e rosna quando alguém se aproxima de mim. No final da tarde ele me acompanha até a saída do parque, e para no portão. Ele fica me olhando, como se perguntasse se eu não o poderia levar para onde moro. Mas, por causa do barulho dos carros, acaba entrando novamente para o parque.
Se pudesse, adotaria o Chimbinha. Ele é negro e vira lata, mas não sou preconceituoso e nem racista.
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a torcedora afirmou que xingou o goleiro de macaco por que estava com raiva por causa do jogo... |
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então ela tem raiva há muito tempo... |