Existe ainda outras tribos específicas em relação ao fim de ano: a dos mais espiritualizados e que ainda hoje acreditam ou querem acreditar que Jesus nasceu realmente nesta data . Existem os introspectivos e que aproveitam essa época para fazer um balanço de suas vidas e uma profunda análise de como foi o ano que se passou.
Talvez exista um grupo que fique indiferente à esta data, aquelas pessoas solitárias ou os que só pensam no trabalho, odiando as festas e os feriados.
Independente de qual tribo você pertença, não espere que o bom velhinho saia do pólo norte para deixar suas meias cheias de presentes. Não espere que alguém faça algo por você. Olhe para dentro de si mesmo e veja o que você pode fazer para melhorar a sua vida: uma limpeza interior, esquecer o passado, perdoar alguém e perdoar a si próprio, sei lá...
Não espere que o príncipe ou a princesa encantada entre em seu quarto. Ninguém irá te encontrar com você lá dentro. Em um grupo do facebook já vi a pergunta: "Será que uma companhia irá melhorar a minha depressão?" Respondi mais ou menos assim: Se você ficar trancada dentro do quarto, dificilmente irá encontrar alguém.Se você sair por ai, gostar de si mesma, se libertar dos medos e traumas, será mais fácil encontrar alguém para ser um complemento de sua felicidade e não a peça fundamental para este estado de espírito.
Meu mundo
No início de fevereiro de 2013 eu estava saindo do meu quartinho na cidade de Ipatinga-MG. Cheio de sonhos, queria conhecer o Brasil inteiro, depois de ficar oito anos preso em meu mundo. Estava preso não por ter cometido um crime, mas refém e escravo da esquizofrenia, em que o mundo à minha volta não prestava, tudo era uma bosta mesmo. Meu quartinho era o meu refúgio e meu mundo: tinha uma tv(de tubo mesmo), um bom PC, um home theather da CCE e um frigobar.
Havia pintado o meu quarto e, de, dentro dele, não se dava a impressão que eu morava próximo a crackolândia da cidade. Saia apenas para almoçar e voltava rapidamente para o meu mundo. Não era a vida que tinha pedido à Deus, mas pelo menos tinha a paz. A solidão me traz a paz, pois, depois que passei a me conhecer melhor, depois dos surtos, aprendi a conviver melhor comigo mesmo e com os meus pensamentos, não fazendo tantos questionamentos como fazia antigamente.
Mas, infelizmente o crack começou a se expandir pelo entorno da crackolândia da cidade. O aluguel era barato, o quarto muito bom e espaçoso, mas a situação estava ficando complicada demais. Uma das coisas mais importantes para um portador de esquizofrenia é a paz. Sem ela, tudo fica mais difícil. Todo mundo já deve saber o que o crack faz, não só com o usuário, como também o estrago que ela faz em quem está indiretamente envolvido, como a família e os vizinhos. O negócio é tão complicado que até os traficantes de algumas comunidades do Rio desistiram de vender essa droga de droga.
os próprios traficantes proibiram a venda da droga.... |
Estava pagando alguns empréstimos com o banco, e o aluguel em outros lugares da cidade era caro, Para piorar, o restaurante popular da cidade havia fechado, por falta do pagamento da prefeitura. O prefeito da época havia fechado tudo o que tinha direito, inclusive deixou uma lagoa artificial secar por não mandar consertar uma simples bomba de água. Todos os peixes morreram. Resolvi então fazer algo que sempre cutucava a minha mente: sair viajando por ai, por esse país maravilhoso chamado Brasil. Vendi "tudo" o que tinha, comprei uma barraca, uma mochila e pus o pé na estrada.
O primeiro ano foi melhor do que eu imaginava: conheci lugares e pessoas maravilhosas, não tinha que pagar aluguel e poderia escolher onde morar. Além de tudo, ainda dava para me alimentar melhor, pois a grana do aluguel comia quase metade do meu salário de aposentado. Não sabia que ainda tinha forças para andar 30km em um dia com 11kg nas costas. Não considero essa fuga uma loucura, seria pior ficar trancado naquele lugar cercado de usuários de crack e no ambiente que essa droga faz. Se foi uma loucura, poderia se dizer que foi uma loucura positiva. Liberdade, ar puro, paz, belas paisagens, era tudo o que eu queria naquele momento. E desde pequeno gostei de caminhar, que, para mim é um ato sagrado. Também sonhava em viver fora do sistema, chegando a me imaginar morando perto de uma cachoeira e nada mais.
Depois de um ano de andanças, uma parada em São Paulo. O stress e a correria da capital paulista não me fizeram bem. Além do preconceito contra quem está nos abrigos ou morando nas ruas, ainda tinha a violência. Quase desmaiei quando tentaram roubar este notebook que estou escrevendo estas linhas neste momento. Tive que ser resistente para não deixarem levar o que eu havia comprado com tanto custo. Resolvi então voltar a morar em um cantinho novamente. Mas, para isso tinha que acabar de pagar os meus empréstimos e comprar algumas coisas, pois não adianta nada se trancar em um quarto e não ter o que se fazer dentro dele.
Eu sou um mochileiro, que anda de chinelo, cabelo grande e, às vezes, deixo a barba por fazer. No interior de Minas não sofri muito preconceito, apenas algumas abordagens da polícia, pois o mineiro é muito desconfiado, mas muito acolhedor. Já nas capitais o preconceito, ou até o medo mesmo, é muito grande. Já estive nas ruas no ano de 2002, devido aos surtos psicóticos que tive naquela época. O cenário era um pouco diferente, o crack era mais usado e consumido nas capitais e nas crackolândias. Hoje em dia está tudo mudado: em plena luz do dia, no centro de Belo Horizonte se pode ver pessoas acendendo o cachimbo.
usuário de crack na AV. Santos Dumont, em plena luz do dia |
Hoje, estando nas ruas por vontade própria, dá para se constatar a diferença, ao ver o andar apressado das mulheres segurando firmemente suas bolsas. Creio que, se tivesse surtado hoje, certamente não seria tão ajudado como fui no ano de 2003. Quando se vê uma pessoa suja e mal arrumada nas ruas, o primeiro pensamento que aparece em nossas mentes é de que ela está usando o crack.
Quando não era mochileiro, era um morador de albergue, e o preconceito também existe. Não tinha mais vontade de montar a barraca em Belo Horizonte, pois fui roubado certa noite quando deixei a música do celular ligada e dormi. Resultado: um meliante, provavelmente usando uma faca, fez um buraco na minha humilde residência e fiquei sem o meu aparelho. O jeito foi morar no albergue até juntar a grana para comprar as coisas para o meu quartinho.
Morar em um abrigo e ser aposentado tem a vantagem de se ter a possibilidade de se juntar uma graninha, mas aparecem uma série de desvantagens pequenas, mas, que juntas se tornam um problemão: acordar às cinco horas da manhã em pleno horário de verão, e ter que sair mesmo debaixo de uma forte chuva. O pior também é, ao sair, não ter o que fazer, um objetivo a ser alcançado. O jeito era procurar um refúgio, no parque perto do abrigo e que era pouco frequentado, mas muito bonito. Havia também aquele desgaste para simplesmente carregar o celular nas tomadas que encontrava por ai: não poderia desgrudar o olho um minuto sequer, ou seja, tinha que ficar olhando para o aparelho por cerca de três horas diretas.... À todo instante olhava o aparelho, na esperança de que as barrinhas ficassem cheias, e a última era uma eternidade para ser carregada... Para lavar a roupa, a mesma coisa: tinha que esperar que secassem quase que completamente, não tem essa de que os larápios perdoam os pobres, se tiver algo interessante eles metem a mão mesmo. Roubaram uma camisa novinha que eu tinha da Argentina quando a deixei secando em uma grade perto de uma igreja.
Além disso, o abrigo em Belo Horizonte estava com um clima um pouco tenso. Na primeira vez que havia ficado por lá, no ano passado, as coisas eram bem tranquilas. Mas, depois que voltei para lá, em agosto deste ano, as coisas haviam mudado e muito, inclusive o perfil de quem usava o albergue. Havia muitas discussões tolas, algumas brigas, roubos de celulares, conversas não muito sadias e falta de respeito com o sono alheio. Algumas pessoas estão lá para tentarem realmente mudarem de vida, se tornam evangélicos, tentam se livrar das drogas e vícios, mas, uma boa parte não quer saber de nada mesmo...
Essa situação acabou me deixando a ponto de surtar. Ser confundido com esse tipo de pessoa me fez muito mal. Não sou santo, mas também sou um cara que procura ser o mais correto possível. Em minha cabeça, aonde eu ia, imaginava que as pessoas estavam me chamando de ladrão. Encarava como uma ofensa quando uma mulher passava segurando a bolsa perto de mim, pensava que aquele gesto era única e exclusivamente por causa de mim.
Essas pequenas dificuldades, juntamente com o preconceito, me fizeram ter uma saudade imensa do tempo em que eu morava no meu quartinho em Ipatinga. Alguns filmes nos fazem pensar que sair por ai sem destino é uma aventura sensacional, o que não é verdade.
O meu presente
Então bolei o meu projeto: comprar tudo o que havia vendido e alugar um cantinho, agora em Belo Horizonte. Era um desafio e tanto, queria as coisinhas de volta, mas melhores de que quando tinha em Ipatinga. Queria uma TV LCD, um bom notebook e um home theather da LG.
Foram oito meses morando em albergues, passando os dias em praças, parques e bibliotecas, até conseguir a grana para comprar os aparelhos e deixá-los na casa de um amigo. Foi muito difícil, e tive que ter uma paciência de Jó, Eu, um cara que desde os 17 anos sempre morou sozinho, agora tinha que conviver com cerca de 200 pessoas em um mesmo espaço. Encarei como um teste e acho que fui bem, quase não me envolvendo em confusões. Ambiente de abrigo é um pouco carregado, cada um tem sua história de vida, e muitos problemas. Qualquer coisinha pode ser motivo para uma forte discussão e por mínimos detalhes pode virar briga física mesmo.
Então, no início de dezembro já comecei a procurar alguns quartos. O aluguel aqui em BH é caro, e tive que fazer as contas para ver se daria para alugar um quarto em um local tranquilo e seguro. Se não gastasse grana com bobeira, e parando de comer bobagens, até que daria para ir levando...
Ocorreu tudo naturalmente. Com a proximidade do natal, a necessidade do isolamento foi se tornando maior e, finalmente, depois de muita procura, exatamente no dia 23, consegui encontrar um pequeno quarto, não muito longe do centro da cidade.
No dia 24, comprei um pequeno objeto, mas de fundamental importância para mim: uma antena de TV. Passei o natal no abrigo, quieto em meu canto, enquanto o resto da galera saboreava um rango especial de natal, organizado pelo pessoal do albergue. Passei a noite sonhando comigo, em meu canto, assistindo uma TV, com tranquilidade e paz, acima de tudo. Aliás, sonhei com isso por oito meses seguidos. Não podia ver uma TV que dava aquela angústia no peito. No dia 25, logo de manhã, me dei o melhor presente de natal que poderia ganhar: sai do abrigo sem me despedir de ninguém, peguei os aparelhos e as roupas na casa do meu amigo e peguei um táxi até o meu novo lar.
Estava agitado, alegre, aliviado. O pesadelo finalmente havia acabado. Rapidamente acomodei os meus pertences no quarto. As minhas velhas roupas se tornaram novas. Só quando perdemos é que damos valor à pequenas coisas: deixar o celular carregar enquanto dormimos, assistir um filminho antigo na TV(não precisa ser a cabo), lavar a roupa, colocar amaciante e deixar secá-la sem preocupações... Poder ouvir uma música à noite, poder relaxar todos os nossos músculos em uma caminha bem macia, ouvir o som do silêncio, tomar um banho na hora que sentir vontade, acordar na hora que desejar...
Mas, o melhor presente que me dei não foi material: não foi o home theather da LG, nem o notebook e muito menos a TV de 32 polegadas. O melhor presente que ganhei de mim mesmo foi a privacidade, a solitude e, principalmente a PAZ!
Esse foi o presente que me dei. E você, se permitiu dar um presente para si mesmo ou ficou esperando o papai noel aparecer?
Música: Meu Jardim
Artista: Vander Lee
Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores
Tô revendo minha vida, minha luta, meus valores
Refazendo minhas forças, minhas fontes, meus favores
Tô regando minhas folhas, minhas faces, minhas flores
Tô limpando minha casa, minha cama, meu quartinho
Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho
Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho
Estou podando meu jardim
Estou cuidando bem de mim