praia de Meaípe |
São cinco e meia da manhã. Acordo com muitas dores, tanto no tornozelo esquerdo como em toda a musculatura da perna direita, que teve que trabalhar muito para compensar o fato de não poder firmar a perna esquerda no chão.
Tento calçar o tênis, mas, como o meu pé está muito inchado, não consigo colocá-lo no meu pé e tenho que prosseguir a caminhada de chinelo mesmo, o que atrasa ainda mais a chegada ao destino final.
Não consigo avistar nenhuma padaria por perto e início a minha caminhada até Meaípe, que deveria ser o ponto de parada do dia anterior. Estou 10km atrasado em relação ao tempo que o pessoal da Abapa, que faz o percurso em quatro dias. Para chegar a Anchieta hoje mesmo, terei que percorrer 33km, tarefa um tanto o quanto difícil nas condições em que o meu tornozelo se encontra.
Planejo então percorrer algo em torno de 20km e deixar para o dia seguinte o restante, para chegar em Anchieta de dia. Mas as dores e a dificuldade em caminhar aumentam cada vez mais com o tempo. Não está acontecendo como das vezes anteriores, quando as dores praticamente desapareciam a medida em que o corpo esquentava. Penso por um momento em pegar um ônibus até Anchieta, para dizer que não desisti no meio do caminho, mas logo descarto a ideia, pois assim estaria enganando a mim mesmo, pois queria fazer o trajeto assim como fazia o Padre, sozinho e com suas próprias pernas.
Depois de sair da Praia de Areia Preta, pego uma BR que vai até Meaípe, mas, para o meu desespero, é uma subida um pouco forte. Paro várias vezes no trajeto, ando tão lentamente que vários idosos conseguem passar por mim.
Eu tinha levantado naquele dia, mas não tinha acordado, estava praticamente rastejando. Precisava de comer algo, tomar um café, um chocolate, qualquer estimulante para me despertar, mas Meaípe parecia sempre distante, apesar dos meus esforços em tentar chegar a essa praia.
Raramente fico de mau humor, mas naquela manhã estava. Poderia me aparecer a Gisele Bundhchen me dando bom dia com o mais belo sorriso que não iria mudar em nada o meu humor. Como já disse anteriormente, de manhã o meu estado de ânimo não é dos melhores, fico apenas calado, não fico de mau humor descontando em outras pessoas.
Pergunto a várias pessoas onde poderia encontrar uma padaria e a resposta é sempre a mesma:
- Vá em frente! Siga em frente!
Fico chateado, pois o mineiro sempre é muito solicito quando é perguntado sobre algum destino, faltando apenas desenhar um mapa para que a pessoa chegue ao local desejado.
Mas finalmente, depois de muito sofrimento, encontro uma padaria legal na BR, antes de chegar a Meaípe. Desabo na cadeira, peço dois pães com manteiga e um copo de café com leite e novamente me assusto com o preço: quatro reais!
Aproveito para descansar um pouco, mas em vão. Poderia tomar o melhor café do mundo, tomar um bom banho frio, ou então tomar um choque de 220V que nada iria alterar o meu estado de ânimo, isso é do meu organismo mesmo, é o meu ritmo biológico. Foi a parte mais sofrida do percurso, bem pior do que na praia deserta, onde fiquei meio perdido.
A alternativa correta seria tratar o tornozelo para depois seguir o caminho, mas como sei que o atendimento no SUS(Seu Último Suspiro) não é dos melhores, principalmente no tempo de atendimento, resolvo prosseguir para terminar o martírio o quanto antes. O caminho, que antes era diversão, se tornou uma obrigação e uma questão de honra.
A praia de Meaípe mais parecia uma ilusão de ótica: sempre dava para avistá-la, mas sempre continuava longe, mesmo depois de um bom tempo de caminhada .Estou meio que me arrastando na BR, mais parecendo um daqueles zumbis andando no clip Thriller, do Michael Jackson.
Depois de muito desgaste físico e emocional, finalmente chego a tão famosa praia de Meaípe, que já foi classificada pela Guia 4 Rodas como uma das mais bonitas praias do Brasil. Mas, devido ao meu estado, prefiro não dar um mergulho, além de ser perigoso entrar na praia com apenas uma perna de apoio.
A minha intenção inicial era não ter um prazo definido para concluir o percurso, queria curtir as praias, as paisagens, parar para refletir um pouco, etc. Mas, devido as dores queria terminar o quanto antes o caminho
Consigo achar uma lan house, e fico cerca de duas horas em frente ao PC, não por ter o que acessar, mais para descansar um pouco mesmo. A internet é bem lenta e cara. A minha mania de perseguição me faz pensar que na lan house existe um pc lento para pessoas indesejáveis e que eu era uma delas.
Às onze horas vou almoçar. No restaurante o atendimento não é dos melhores, além de lento. Tive que pedir para apressarem o meu PF, pois não podia perder muito tempo, já que ainda pensava em terminar o caminho naquele dia mesmo, ainda que chegasse a Anchieta de noite. A comida é pouca, apesar do preço. A sensação que tenho é que Meaípe toda me conhece e que não foram com a minha cara. Peço também uma Coca Cola e, de sobremesa, como um chocolate, para tentar aumentar os níveis de serotonina em meu organismo(baixou o psiquiatra!)
Após um descanso de quase duas horas, não sei por que, me sinto renovado e o meu estado de ânimo muda completamente. Consigo calçar o tênis e caminho com mais firmeza. Estou tão animado que ligo o celular e começo a cantar em voz alta as músicas do aparelho, já que estou em uma BR e não tem ninguém por perto para escutar tamanha desafinação.
faltando pouco |
Estou tão animado que começo a pensar que poderei chegar a Anchieta hoje, mesmo que de noite. Pelos meus cálculos, devem estar faltando cerca de 20km, e, como as dores diminuíram, não seria difícil completar o caminho.
O percurso depois de Meaípe, é, em sua maior parte, na BR. Enquanto caminhava na calçada perto da praia não sentia nenhum cansaço, acho que o visual me dá um ânimo extra. Mas, quando a BR muda de percurso e sai do mar, o cansaço começa a tomar conta de mim. O visual é monótono e fico meio entediado. Para piorar, é uma serra, e tive que parar várias vezes para descansar e prosseguir a caminhada. Novamente, penso que o melhor a se fazer é terminar o caminho no dia seguinte, para não forçar demais a minha musculatura, principalmente da perna direita, já muito desgastada nesses três dias de caminhada.
Mas, depois de finalmente sair da BR, o trecho é feito em estradas de terra, o que me faz sentir meio que em Minas Gerais. Começo a me sentir melhor a cada placa que avisto indicando o quanto faltava para se chegar ao destino, quase não parando para descansar. Aliás, era pior parar naquele momento, pois as dores voltavam.
E assim fui indo, mais no embalo do que propriamente pela força física. Em um vilarejo, entrei em um bar para pedir água. O relógio na parede indicava três horas e quarenta minutos da tarde. Logo após sair do bar, retomei a caminhada e avistei uma placa indicando que faltavam 12km para se chegar ao ponto final. Foi ai que tive a certeza que iria conseguir finalizar o percurso naquele dia mesmo, mesmo que tivesse que caminhar a noite, só torcendo para que o caminho continuasse por estrada de chão e que o Padre não tivesse feito muitas estrepolias para chegar ao final.
Rapidamente cheguei a praia de Castelhanos, tirei algumas fotos e continuei a caminhar, para as dores não voltarem. Sinceramente, não sei de onde estava tirando tanta energia e força de vontade, já que de manhã estava pensando em desistir, de terminar o caminho de ônibus, devido as dores. Agora, já ao anoitecer, até cumprimentava os bois e as vacas que encontrava pelo caminho. Era como a bateria de um celular, que de manhã estava quase que desaparecendo a última barrinha do simbolo da pilha, mas que, de tarde uma força misteriosa a tinha recarregado completamente, estando as três barrinhas da pilha cheias.
E foi assim, avistando as placas, indicando 6, 4, 3, 2 km que cheguei a Anchieta. Logo na entrada, uma turma jogava bola e um cara errou o passe, vindo a redonda parar perto de mim. Quase não tive forças para chutá-la, estava andando meio que no embalo mesmo.
E continuei o caminho, quando avistei um viaduto há um km de distância. Não gostei da ideia de ter que atravessá-lo, pois não gosto de altura e já estava no limite de minhas forças, podendo sentir alguma tontura no meio do mesmo.
entrada da igreja |
Mas, para a minha felicidade, encontrei uma placa do caminho de Anchieta que indicava que eu deveria virar a direita ao invés de seguir em frente e passar pelo viaduto. Continuei o caminho, cada vez mais ansioso para chegar ao final. Sentia que estava perto e as dores e o cansaço não me incomodavam como antes. Não contive a minha alegria quando avistei a entrada da igreja. Peguei a minha câmera para registar o momento e perguntei as horas para uma mulher que passava no momento.
- São seis horas. respondeu.
Não acreditei na coincidência do horário e perguntei novamente, desta vez para um cara:
- São seis horas.
- Mas em ponto?- perguntei meio incrédulo.
- Sim, são seis horas mesmo.
Animado com a coincidência do horário, subi as escadarias da igreja, que não eram muitas. Levantar a perna era uma tarefa um tanto o quanto difícil naquele momento, quase tendo que levantá-las com a ajuda das mãos, mas a vontade de chegar ao final era maior do que as dores e o cansaço que estava sentindo.
Não sei descrever a sensação que tive ao ver a porta da igreja e a placa que indicava 100km
percorridos! Não tive vontade de sair gritando, pulando, como um jogador que faz um gol.
enfim o fim |
A sensação não era de ter ganho algo, não tive vontade de sair gritando:
- Eu sou o cara! Eu sou foda!
Não, a sensação era outra. Era de vitória sim, mas principalmente a do dever cumprido. Eu não havia competido com ninguém e não tinha ganho um jogo, apenas tinha superado alguns obstáculos, dificuldades e as minhas limitações, devido as dores. Era uma sensação de alívio principalmente. E claro que tem a parte espiritual também, que não sei detalhar o que a caminhada ou peregrinação pode fazer com uma pessoa.
Sentei-me na escadaria da igreja e comecei a refletir, fazendo uma analogia entre a caminhada e a vida.
A vida para mim é um caminho, ou vários caminhos que podemos escolher. Existem partes do caminho que são difíceis(como a praia deserta), os percalços( a contusão no tornozelo), as coisas belas(as paisagens), as dificuldades (o cansaço). Às vezes, pensamos em desistir, pensamos que não temos forças para continuar, mas, de onde menos se espera, encontramos energias para seguir até o fim e superando os obstáculos.
Assim é a vida. A vida é um caminho, caminhar é viver, e viver é caminhar.
cansado, mas com a sensação do dever cumprido |