Último dia no abrigo. De manhã tomo o tradicional café com leite e pão com manteiga, que parece que não é dormido, e sim hibernado, mas dá pare descer. Na saída entrego o crachá, a chave do maleiro e a toalha. O porteiro me deseja boa sorte e na rua fico sem saber qual destino tomar.
Fiz poucas amizades neste lugar, por isso foi fácil o processo de despedida. Claro que irei sentir saudades das acomodações do abrigo, que sem sobras de dúvida é o melhor do Brasil, classificado com quatro estrelas pelo viajante maluquinho shasuahsushauhsas
Tirando o vizinho do beliche, não conversava com quase ninguém no arsenal. A verdade é que sou anti social mesmo, reconheço, e não me encaixo em tribo nenhuma, a não ser os da tribo dos sem tribo que se sentem diferentes de todo mundo.
O arsenal, por ser tão grande, a distância entre as pessoas se torna maior. Lá tem a tribo da galera que joga o futebol na quadra do abrigo, a dos mais idosos, a da galera que só quer saber da erva danada, a dos nordestinos e a dos haitianos, dentre outras.
Por falar em haitianos, a rejeição contra eles está aumentando a cada dia no abrigo. Essa questão venho comentando há algum tempo aqui no blog, mas de uns tempos para cá virou manchete nacional, depois que centenas de haitianos saíram do estado do Acre e vieram para a capital paulista.
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/04/secretario-critica-acre-por-despejar-haitianos-em-sp-sem-aviso-previo.html
Certa vez o pau quase quebrou onde a galera costuma recarregar os seus celulares no abrigo. O clima já é um pouco tenso, já que todo mundo fica com um certo receio de ter o seu aparelho roubado, e então não podemos desgrudar os olhos do celular até a carga ficar completa. A maioria carrega apenas a bateria com o carregador universal, pois muitos aparelhos são produtos de furto, comprados na "feira do rolo", na praça da Sé e no Glicério. Certa vez um haitiano encostou a mão no celular de um brasileiro e esse pequeno gesto foi quase o estopim para uma guerra entre brasileiros e haitianos.
A coisa ficou séria, haitianos e brasileiros discutindo e quase saindo nas vias de fato, já que nenhum funcionário do abrigo apareceu por lá, mas com o tempo os ânimos se acalmaram.
Mas será que o motivo foi apenas o toque no celular? Acho que não, quer dizer, tenho certeza que não. Para os albergados brasileiros, cada haitiano representa uma ameaça, uma chance a menos de se conseguir uma vaga em um abrigo. O frio está chegando, e com a copa do mundo por ai, a coisa vai ficar tensa nas ruas das sedes, pois muitos dizem que as prefeituras querem dar uma "limpeza" para quando os turistas chegarem e pensarem que o Brasil é um país sem pobreza. Os brasileiros albergados também reclamam que os haitianos trabalham por menos dinheiro e que recebem uma ajuda do governo, algo em torno de um salário mínimo. Acho essa segunda questão improvável, é só uma conversa que vai passando de albergado para albergado mesmo e com o tempo acaba virando uma meia verdade.
Outro dia na quadra do arsenal estavam jogando um time só de haitianos contra os brasileiros. Estava longe da quadra, mas os gritos me chamaram a atenção:
- Aqui é Brasil %$@&.! bradava um cara mais exaltado.
Os haitianos jogavam duro, mas não eram desleais, como os brasileiros, que não conseguiam conter esse sentimento de revolta contra os estrangeiros. Todo mundo sabe que os haitianos adoram o futebol brasileiro, que saem nas ruas comemorando quando a seleção canarinho ganha uma copa. Eles jogam o futebol de salão como se estivessem jogando em um campo de futebol gramado, talvez por se espelharem nos jogos vistos pela TV em seu país. Os brasileiros já tem mais malícia na quadra e jogam no passe curto, que é o mais usado no futsal. Mas o jogo parecia mais uma decisão de copa libertadores, de tão catimbado e disputado que estava. A qualquer momento poderia rolar uma briga generalizada. O que salvou foi o segundo gol dos brasileiros, já que cada partida termina com o segundo gol de qualquer time, para que quem esteja do lado de fora também jogue.
E agora Júlio?
Voltando à minha situação, não sei muito o que fazer na parte da manhã. Conseguir vaga fixa em outro abrigo está muito difícil, pelo que pude apurar, talvez por causa do frio, que já chegou em São Paulo. Dormir na rua só em último caso. Tenho receio de montar a minha barraca em terras paulistas. Os moradores de rua geralmente montam suas barracas e lonas próximas umas das outras, e os que não tem procuram dormir em grupo, com receio de que possam ser agredidos ou roubados durante a noite. Hoje morador de rua tem celular, tablet, caixas de som e outras coisas mais. E se por acaso um morador de rua for a uma delegacia se queixar de que foi roubado, provavelmente nem será atendido.Não sou de me enturmar facilmente, e não é só por causa da esquizofrenia. Às vezes é melhor andar sozinho mesmo, pois, se estamos enturmado com uma galera que gosta de brigar, por exemplo, a coisa pode sobrar para o nosso lado. E tem aqueles moradores de rua que cometem pequenos roubos, e, se por acaso estamos perto do cara nessas horas, podemos fazer uma visitinha na delegacia. Como não está escrito na testa de cada um quem é honesto ou não, prefiro andar sozinho mesmo. Não se sabe se o cara está querendo fazer amizade com a gente para, num momento de distração, nos roubar. Mas não quero dizer que todo morador de rua tem esse hábito, muitos estão realmente a procura de um trabalho digno para sair das ruas e alugar uma casa ou um quarto.
Então, como gosto de ficar sozinho, não vou cometer o erro de montar uma barraca nas ruas de São Paulo. Já percebi que alguns caras ficam reparando na marca de minha mochila, perguntando quanto custa, talvez para se ter uma ideia de quanto poderão vende-la. Na hora de carregar o celular, me perguntam se o mesmo é original, o preço, etc. Também não escondo de ninguém que sou aposentado. Então sei que sou uma potencial vítima do pessoal de rua. Se eu fosse um cara mais comunicativo, com facilidade de fazer amizades, a situação poderia ser mais tranquila. Mas sou um cara de ficar mais na minha mesmo, só brinco com pessoas que realmente conheço, e isso talvez possa gerar uma certa antipatia em relação a minha pessoa.
Estou com uma lista de abrigos da cidade na mão. Encontrei na internet. São cerca de uns trinta, mas deve ter mais, já que a lista é um pouco antiga e a copa do mundo está chegando. Conversando com outros abrigados e moradores de rua, cataloguei um por um, com estrelas, com base no Arsenal da Esperança, que, para mim, merece quatro estrelas.
Vou para a tenda Bresser por volta das quatro da tarde. Fiquei um tempo no arsenal para confirmar se o meu nome já estava excluído, pois sem isso não poderia entrar em um outro abrigo. Ontem quase consegui uma vaga, mas, como era feriado, o meu nome ainda constava na lista do arsenal e tive que dormir por lá mesmo.
Não almocei. Essa situação de indefinição me tira a fome. Vou para a tenda Bresser/Mooca. É um local de convivência para moradores de rua.e fica embaixo de um movimentado viaduto. Tem televisão, lugar para jogar damas e xadrez, tomar banho, etc.A assistente social me diz que o melhor a se fazer é ir para uma praça e tentar uma vaga de pernoite em um abrigo qualquer da cidade. E esse é o meu temor, não saber com certeza para onde serei levado, pois alguns abrigos são meio complicados. De tarde, várias kombis rondam a cidade à procura de moradores de rua. Então, por volta das quatro e meia vou para a praça do Largo da Concórdia, no Brás. Lá tem um posto policial e, se não conseguir uma vaga, poderei montar a barraca na praça. O policial que estava de plantão permitiu que eu montasse a minha humilde residência naquele lugar. Assim poderia dormir mais tranquilamente.
Até hoje não descobri o motivo do povo de rua falar tão mal assim da polícia militar de São Paulo. Nem cheguei a ser abordado durante a viagem Passos dos Jesuítas, no litoral do estado. O único que tive contato apenas conversou amigavelmente comigo, até me ofereceu um lanche e me deu dicas do caminho, ao me dizer que o litoral de Praia Grande estava lotado de "noiados".
Em Belo Horizonte dificilmente um policial deixaria montar uma barraca no meio de uma praça. Quando estava dormindo em minha barraca na capital mineira, cheguei a ser abordado umas três vezes, sendo que em uma delas o policial foi bastante autoritário e sem educação comigo. Ele chegou por volta das dez da noite e começou a pedir para que saísse, balançando a barraca de um lado para outro, e, claro que levei um susto enorme, já que estava quase pegando no sono. Tive que elevar a voz para ele me deixar em paz, pois estava dizendo que eu teria que voltar para Ipatinga, a última cidade em que estava morando em um lugar fixo. Disse para ele que sou belo horizontino e que tinha o direito de morar no lugar onde havia nascido. Ai sim o guarda baixou a guarda e foi- se embora. Às vezes temos que elevar a voz, pois alguns policiais pensam que não somos gente. As outras duas abordagens foram tranquilas. Como existem poucos barraqueiros em Belo Horizonte, a polícia da cidade talvez me enxergue como um manifestante, que eu esteja reivindicando algo.
em São Paulo é comum barracas montadas nas ruas |
São cinco e meia da tarde.e nada de kombi aparecer. Nessas horas o tempo passa muito devagar. Muitas incertezas invadem a minha cabeça. Será que eles irão realmente passar por aqui? E se dormir na praça, vai ser tranquilo? Lamentei ter deixado o saco de dormir em Belo Horizonte, pois não havia previsto ficar tanto tempo em São Paulo, e a noite parece que vai ser meio congelante...
-obs: me desculpem pelos erros de português e talvez por repetir algumas palavras, mas, na lan house não dá para revisar o texto como desejaria.