Conheci Fidelis no ano de 2004. Quando fui levado para o albergue de Ipatinga, ele já estava lá. Não falava muita coisa, vivia em seu mundo, com a mão no queixo como que buscando lembranças de um passado esquecido.
- O guarda bateu em Fidélis. - era a frase mais usada por ele.
Devia ter uns 30 anos de idade e ninguém sabia de onde veio. Apareceu pelado em uma rua de Ipatinga e foi levado pela polícia militar para o albergue. Não dava trabalho. Sabia fazer suas necessidades no banheiro. Sabia também a hora de almoçar, jantar e dormir. Só não era muito chegado em tomar banho. Às vezes, quando ficava mais agitado, brincava de capoeira com qualquer pessoa que via no pátio do abrigo. Também soltava umas risadinhas quando ficava com a mão no queixo. Não sou psiquiatra para dizer qual tipo de esquizofrenia ele tinha. Talvez seria catatônico ou hebrefênico, sei lá. Tenho mais noção da esquizofrenia paranoide, que é a que eu tenho e que é a mais comum.
Até hoje só vi um catatônico em minha vida. Era como se fosse uma estátua, seu olhar era vago, sem nenhuma expressão no rosto, quase não piscava os olhos. Não respondia a nenhum estímulo externo e ficava com uns movimentos repetitivos com os dedos. Talvez o Fidelis seja hebrefênico mesmo, sei lá.
Bem, antes de continuar a história de Fidelis, me vejo na obrigação de contar a minha relação com os abrigos. Talvez os leitores possam estar pensando que eu só vivo nesses lugares, que eu sou um "boca de rango# "e tals sahsuahsaushas
pedreira Prado Lopes, Belo Horizonte |
O abrigo era muito sujo e deprimente. À noite era fornecida uma sopa em um prato de plástico. Certa vez, o bicho pegou na favela. Tiros de metralhadoras ou submetralhadoras eram ouvidos sem parar, sendo que alguns pareciam ter caído bem perto da porta do albergue. Não fiquei lá mais do que três dias, raramente voltava para checar as correspondências e verificar se o meu cpf havia chegado. Sinceramente dormir nas ruas era mais tranquilo do que naquele lugar.
Depois só fui conhecer outro abrigo em Ipatinga. Foi durante o meu segundo surto, por volta do ano de 2003. Tinha que trabalhar com todas aquelas vozes e pensamentos em minha cabeça, e as minhas energias foi aos poucos se dissipando. Não tomava o haldol receitado pelo psiquiatra, não iria conseguir trabalhar dopado daquele jeito, ainda mais de noite, operando uma mesa de som.
Quando as minhas energias já estavam no fim, comprei um colchonete e várias pilhas para o meu radinho. Era uma sexta feira e, por volta das cinco horas da tarde, deitei-me em frente a agência do INSS. Não queria chamar a atenção, fazer greve de fome, etc. Simplesmente não tinha mais energia para continuar a lutar e deixei tudo nas mãos de Deus. Não iria me alimentar, havia feito a minha última refeição em uma churrascaria da cidade, como se fosse um condenado à morte. Comprei várias pilhas pois queria ir dessa para outra ouvindo música, achava que isso poderia amenizar o meu sofrimento, pois não tinha muita noção do quanto iria viver sem me alimentar. Bem, o resto da sexta feira e o fim de semana foram tranquilos, só tomei um lanche no domingo, pois um cara me ofereceu dez reais. Mas na segunda feira o bicho pegou. Teve polícia e até ambulância, fora o monte de curiosos que paravam para ver o que estava acontecendo.
- Pensei que ele estava fingindo que estava louco só para se aposentar!- disse uma funcionária do INSS.
O policial parecia querer me levar, pois estava discutindo com uma assistente social, afirmando que eu estava me drogando com remédios. Realmente eu estava tomando alguns "diazepan's" durante o dia, para não ficar muito agitado.
No final das contas a assistente social pareceu ter convencido o guarda de que eu era gente boa. Acabei indo de ambulância para um asilo, já que na cidade não havia um albergue.
Era dezembro. Me lembro bem. Fiquei três dias nesse asilo consertando os piscas- piscas que serviriam para enfeitar o local e a árvore de natal. Era complicado consertar aqueles enfeites, pois, se uma "lampadazinha" queimasse, outras dez paravam de funcionar também. Então, com toda a paciência do mundo, tirei todas as lâmpadas, testei uma por uma, lixei os seus contatos e refiz tudo de novo. Foi uma terapia para mim, assim não daria tanta importância aos meus pensamentos.
Era um bom asilo, com boas dependências. Haviam muitas enfermeiras, cinco refeições por dia, enfim, os velhinhos eram bem tratados naquele lugar. Fiz amizade com alguns, eles apenas queriam alguém para conversar, serem ouvidos. Havia uma que era cadeirante, mas muito alegre e comunicativa. Uma outra parecia ter transtornos mentais, pois chorava como se fosse uma criança. Um outro vez ou outra soltava uns berros. Tinha um cara que aparentava ter apenas uns 50 anos, seus cabelos ainda não estavam embranquecidos, mas não conversava com ninguém. Fiquei pensando o que o levou a morar naquele local.
Mas eu não podia ficar naquele lugar por muito tempo e então fui levado para o albergue de Ipatinga. O negócio era tenso de noite naquele lugar. Muitas brigas já que qualquer pessoa poderia entrar lá, mesmo estando alcoolizado ou drogado. Grande parte do pessoal já tinha passagem pela polícia. Então tratei de ficar quietinho no meu canto para não sobrar para mim. Só houve problemas mesmo quando fui roubado por um usuário de crack. Chamei a a polícia, mas o guarda, ao chegar ao local, disse que, se houvesse confusão todo mundo iria parar na delegacia. Ou seja, tive que deixar passar batido, e ainda aguentar a zoação do cara e não perder a paciência.
Mas foi assim que conheci Fidelis, ficando cerca de um ano naquele lugar, me tratando no CLIPS, até conseguir o auxílio doença. O tratamento na área de saúde mental em Ipatinga era muito bom, poderia ficar conversando com o psiquiatra durante meia hora, e isso me ajudou e muito na minha recuperação parcial.
Me lembro de um certo dia em que eu e o Fidelis fomos juntos ao CLIPS. O psiquiatra me receitou a risperidona e um outro remédio para o Fidelis. Só sei que acordei detonado no dia seguinte, o meu amigo também ficou mal, até parou de falar e dar as suas risadinhas. Provavelmente ele tomou também a risperidona.
Como havia vomitado no jantar, pensei que o psiquiatra também estava fazendo parte do complô para me matar aos poucos, para não ficar muito evidente de que se trataria de um crime. Parei de tomar e fiquei fingindo, guardando o remédio no canto da boca e depois jogando fora.
Já o Fidelis continuou tomando, pois as funcionárias conferiam se ele realmente havia engolido o medicamento. Estava apático, e, mesmo passando semanas, ele não teve nenhuma melhora. Não se lembrou de nada, não falou nada.
Depois de passar na perícia do INSS, aluguei um quarto e fui embora do abrigo. Meses depois, fui visitar os funcionários e, ao perguntar pelo Fidelis, fui informado que ele havia sido transferido para um hospital psiquiátrico. Fiquei triste, afinal ele não era agressivo, não fazia mal a ninguém, ao contrário, divertia o pessoal do abrigo com o seu jeito de ser. Provavelmente deve estar tomando um haldol injetável até hoje ou então um outro sossega leão qualquer. Ou seja, ele foi condenado a passar o resto de sua vida em um hospital simplesmente por não saber quem é e por apenas dizer:
- O guarda bateu em Fidelis...
Será que nesse caso vale a pena medicar uma pessoa? O Fidelis não era agressivo, não fazia mal a ninguém, não teve nenhuma melhora com os remédios. Deixou de sorrir, de falar e de brincar de capoeira.
# boca de rango- indivíduo que é comumente visto em lugares onde há doação de alimentos e roupas. Raramente é visto em locais onde é oferecido trabalho.