Dia 05/09. Devia ser umas dez horas da manhã daquela quarta feira com céu limpo. Centro de Belo Horizonte. Havia acabado de sacar parte do pagamento de minha aposentadoria.
Estava descendo a avenida Paraná em direção ao mercado central, com a intenção de comprar os ingredientes para fazer a minha tradicional "ração matinal". Quem acompanha o blog sabe que todo dia de manhã tomo um mix composto de leite de soja, gérmen de trigo, aveia e farelo de trigo. Faço isso desde o final da adolescência, ao ler sobre os benefícios desses alimentos em um antigo livro de homeopatia. Procuro manter meu intestino funcionando da melhor maneira possível, pois dizem que o intestino seja o nosso segundo cérebro.
Mas, voltando ao assunto inicial da postagem, estava descendo a avenida Paraná, quando, de repente olho para o chão e me deparo com uma carteira de couro bem cheia. Não hesitei e a abri ali mesmo na calçada. Para meu espanto ela estava recheada era de dinheiro, exatamente 950 reais!!!
Me espantei por que hoje em dia não é preciso andar com tanto dinheiro na carteira, temos cartões de poupança, cartões de crédito, conta corrente, etc... Mas talvez o dono da carteira seja avesso à tecnologia.
A minha primeira reação foi arregalar os olhos e pensar em uma maneira de entregar aquela carteira que, além de dinheiro, estava repleta de documentos. A primeira opção que pensei era ir no posto policial mais próximo. Mas, como "bom paranoico" que sou, imaginei que não teria 100% de certeza que o dinheiro seria entregue ao proprietário daquela carteira.
A polícia militar tem todo o meu respeito e admiração. Eu mesmo cheguei a pensar em entrar para a polícia, mas desisti por que na época o salário inicial era muito baixo. Ainda bem né? Já pensou o maluquinho andando por aí com uma arma na mão para proteger a população? Acho que iria surtar bem antes dos 32 anos de idade... Não tenho nada do que reclamar do serviço da polícia militar. Obviamente que existem sim os maus defensores da lei. Isso acontece em todas as profissões, não tem exceção. Existem os maus médicos, os maus juízes de futebol que quem paga o preço são suas progenitoras.
Fui abordado diversas vezes quando estava nas minhas andanças pela região sudeste do nosso país. E fui revistado algumas vezes, sem maiores problemas. Fui liberado depois da averiguação e não encontrarem nada de ilícito em minha mochila. Era complicado ter que tirar tudo daquela enorme mochila, mas sei que faz parte do trabalho dos caras. Não estou acima do bem e do mal para não ser um suspeito. Afinal eu era um cara esquisito andando pelas cidadezinhas do interior de Minas Gerais com uma mochila nas costas e montando barraca perto das igrejas. O mineiro é muito hospitaleiro e receptivo, mas é um pouquinho desconfiado.
Voltando ao tema da postagem, resolvi não entregar os documentos para a polícia. A possibilidade de entregar a carteira para um mau policial existia, é óbvio. O mesmo pensei em relação aos correios. Admiro muito o trabalho desse pessoal dos correios, principalmente os carteiros, que ficam o dia inteiro caminhando sob chuva, sol para nos entregar nossas correspondências.
A solução foi vasculhar a carteira em busca de informações sobre o dono. Além da identidade e do dinheiro, havia outros documentos, um cartão de crédito, exames, etc... Mas não encontrei nada que pudesse me levar a ter um contato imediato com o Ferdinando (nome fictício).
Fui então para uma lan house e enviei dois emails: um para o clube que ele é sócio, pois havia encontrado um recibo do pagamento de uma mensalidade, e o outro enviei para uma clínica que ele havia feito alguns exames.
Sai apressado da lan house. Não estava me sentindo nada bem transitando com aquela carteira recheada de dinheiro que não era meu. Em minha paranoica mente me via sendo abordado pelos policiais e sendo levado para a delegacia e sendo preso. Não pensava mais em nada, só queria entregar aquela carteira o mais rápido possível para o proprietário. Me sinto mal só de imaginar que estou dentro de uma pequena cela lotada de criminosos. A liberdade para mim não tem preço. Digo liberdade física e psicológica também. A liberdade de sermos quem somos de verdade, sem medo do que os outros irão pensar da gente. E a liberdade de falar o que pensa, pelo simples fato de não ter o rabo preso com ninguém.
Depois da lan house apressadamente voltei para meu quartinho e escondi a carteira em um local seguro. E não estava mais em paz, meus pensamentos estavam acelerados e estava imaginando que pessoas haviam tramado aquela situação, para que eu encontrasse a carteira para depois ser acusado de roubo. Tudo se passava na minha cabeça paranoica. Inimigos reais e imaginários que pudessem ter arquitetado tal plano apareciam aos montes em minha mente.
Confesso que, já em casa, por um breve momento cheguei a pensar em gastar todo aquele dinheiro. Pensei também em gastar apenas uma parte e entregar a carteira nos correios, seria como uma recompensa pelo ato. Sei que infelizmente muitas pessoas fariam tal ato. E ficou aquela batalha entre o bem e o mal em minha consciência. Mas o "anjinho" como sempre falou mais alto e veio logo me censurando, me dizendo que eu nunca iria mais ter a consciência tranquila.
a eterna luta entre o bem e o mal em nossas mentes e corações |
E a única coisa que pensava era entregar aquele dinheiro. Mas teria que ser nas mãos do dono. Queria ter a certeza absoluta e total de que a grana seria entregue para o Ferdinando, pois aparentava ser uma pessoa humilde e simples. O demoninho então se calou, apesar da situação estar precária para o meu lado. Estou me equipando para voltar as minhas andanças pelo Brasil e tenho que acabar de consertar minha bicicleta e me equipar também com mochila, saco de dormir, etc.
No dia seguinte a secretária do clube que o Ferdinando frequenta me retornou o email, afirmando que o telefone dele estava desatualizado e que não conseguira entrar em contato com ele. Disse que iria deixar um aviso na ficha dele para quando ele vier ao clube entrar em contato comigo. O pessoal do laboratório que ele fez exames não me retornou a mensagem. Isso só fez pensar ainda mais que os meus inimigos estavam tramando algo para me pegarem...
A partir desse momento não tive mais sossego. A minha consciência não parava de martelar minha mente:
- Ladrão, ladrão, ladrão...
E fiquei imaginando alguma forma de entregar aquela carteira para o seu dono. Havia me dado essa missão e sou um cara teimoso.
Parecia que eu estava avistando mais policiais e viaturas do que de costume, ao andar pelas ruas de Belo Horizonte. E parecia que ouvia ainda mais do que de costume as sirenes daqueles carros. Em minha mente os policias estavam meio que avisando que iriam me pegar mais cedo ou mais tarde.
Com o passar dos dias já estava imaginando que todos os policiais militares e civis de Belo Horizonte sabiam do fato, e que a qualquer momento iriam me abordar ou então fazer uma busca em meu quarto para me prenderem.
O diabinho às vezes dava as caras, sussurrando no meu ouvido, dizendo que era para eu deixar de ser bobo e torrar aquela grana, afirmando que todo mundo iria fazer o mesmo. Mas não fraquejei, sabia que não iria ter mais paz pelo resto de minha vida. No meu primeiro surto psicótico cheguei a dizer para um policial me prender, pois antigamente acreditava no que os outros falavam, e na época rolava um boato na cidade onde eu morava de que eu estava com aids. Fiquei com um sentimento de culpa exagerado, pensando ter contaminado as poucas pessoas que tive relacionamento sem o preservativo em toda a minha vida. Considero um crime contaminar uma outra pessoa conscientemente.
Mas, certo dia, ou melhor, certa noite, paguei uma pizza com o dinheiro que estava na carteira. Tinha pedido a redondinha pelo whatsapp mas estava sem dinheiro naquele momento e não gosto muito de usar o cartão da minha conta poupança. Sempre penso que alguém pode digitar uma quantia maior do que estou gastando e que a minha grana irá embora com um simples apertar de uma tecla...
E também não uso o cartão do meu pagamento seja na internet ou outro lugar, apenas o uso para nos caixas do banco para sacar a grana. Nem na lotérica estou mais confiando.
Enviei mais um email para o clube do Ferdinando, mas não me responderam, apesar de ter explicado toda a situação. Como que as pessoas podem ser assim tão frias, sem se preocupar com os problemas dos outros? Não havia pedido os dados do cara, apenas pedi para que entrassem em contato com ele, e que passassem o meu telefone e email.
Por um breve momento pensei em ir à um desses programas de TV para achar o Ferdinando, que mora em uma cidade próxima aqui de Belo Horizonte. Mas não gosto muito de câmeras e não queria aparecer na televisão, ainda mais pelo fato de estar apenas cumprindo uma obrigação de um bom cidadão que sou. Hoje em dia quando acontece algo semelhante esse tipo de ato vira manchete nos jornais, infelizmente a honestidade está sendo motivo para a mídia ocupar seus minutos com isso.
Os dias foram se passado e o clube nada de retornar meus insistentes emails. Cheguei a pensar em ir de bike até a cidade do cara, mas ainda tenho que comprar uma barraca, já que a cidade fica distante 102km da capital mineira.
A situação estava ficando insuportável: não estava dormindo direito e já não estava mais tendo certeza do que ouvia. Algumas vezes escutei pessoas me chamarem de ladrão. E o medo da policia aumentava a cada dia.
E foi só uma questão de tempo para surtar de vez. Comecei a gastar o dinheiro com bobagens. A intenção não era me apropriar do dinheiro, pois iria fazer um empréstimo para devolver a grana quando encontrasse Ferdinando. A verdade é que não estava mais aguentando conviver com aquela carteira. Não roubei o dinheiro, foi o dinheiro que havia roubado a minha paz e a minha tranquila consciência. Poderia me desfazer do dinheiro, entregá-la ao correio, mas também creio que tenho um senso de justiça muito grande pelo fato de ser do signo de libra e queria de qualquer maneira entregar o dinheiro nas mãos do dono. Eita situaçãozinha complicada! Estava me sentindo o próprio Carlão, personagem principal da novela Pecado capital.
Pensei várias vezes em queimar a carteira e jogá-la no rio Arrudas, aqui em Belo Horizonte. Pensava em entregá-la para a polícia também, mas à essa altura as minhas paranoias haviam tomado conta de minha mente e eu já estava com medo dos homens da lei. Pensei também em vender "tudo" que tenho (tv LCD, o note e o frigobar) e sair por aí com a minha bike. Mas sabia que o sentimento de culpa iria me seguir por onde eu fosse. Como sempre o anjinho falou mais alto nessas horas conflituosas.
Após um mês de tormento, resolvi enviar um novo email para o clube. Anteriormente estava respondendo as respostas da secretária do clube. Imaginei que talvez ela iria dar maior atenção à um novo email do que uma resposta de um email já enviado. E, dito e feito! Um dia após a secretária retornou a minha mensagem informando o número do celular do Ferdinando! Imediatamente coloquei créditos no meu celular e entrei em contato com o cara, que ficou muito feliz e surpreso ao ouvir minha voz quando disse que estava com sua carteira.
Fiquei um pouco receoso para dizer que havia gasto parte da grana e que iria repor tudo em três dias úteis, que é o tempo de demora para sair o empréstimo na caixa econômica federal. Para minha surpresa ele não achou ruim não, parecia ser uma pessoa bastante tranquila. E, afinal, ele estava recuperando um dinheiro com que provavelmente não estava mais contando em reaver.
Combinamos então de nos encontrar no dia seguinte, perto do restaurante popular de Belo Horizonte. Mas a alegria de ter encontrado o dono da carteira logo passou, dando lugar á uma enorme desconfiança de que o Ferdinando estava no meio de toda aquela armação criada pela minha paranoica mente. Estava imaginando que o cara havia combinado com os policiais de me pegarem, pois tem um posto policial bem perto do local onde iríamos nos encontrar. Ele iria dizer que havia sido assaltado quando me encontrasse. Os policiais então iriam me revistar e encontrar a carteira em meu poder... Tudo muito bem combinado, cheguei até a pensar em gravar as conversas de telefone que tinha feito para o Ferdinando.
Dormi mal pra caramba durante a noite. Não saía da minha cabeça esses pensamentos de que tudo aquilo não passava de armação para me pegarem. Mas, apesar de todas as paranoias, por volta do meio dia saí para ir ao encontro e finalmente tentar devolver a grana para me livrar daquele peso que estava sob minhas costas. Nessas horas me apego à minha fé, não tem outro recurso. Pedi proteção ao meu anjo da guarda e saí de casa. Antes das paranoias o que eu mais pedia era dinheiro, mas, depois que os surtos vieram, só quero proteção e saúde mesmo. O resto a gente corre atrás né? No meio do caminho tomei 5mg de diazepan, que me deu um sono danado, pois estou no processo de desmame desse ansiolítico e há bastante tempo que estou tomando apenas um pedacinho do comprimido de 10mg. Parto ele em quatro pedaços e pouco a pouco vou raspando uma das partes, e creio que hoje em dia devo estar tomando algo em torno de 1.5mg.
Apesar da sonolência, ter tomado o diazepan me fez bem naquele momento de quase surto. É o famoso S.O.S, pois não consigo tomar os antipsicóticos. Meus pensamentos se desaceleraram e, apensar da tontura e moleza que sentia, consegui chegar ao local do encontro e o Ferdinando já estava á minha espera. Notei que o trailler da polícia não estava no local como sempre, o motivo não sei.
Ao contrário de que imaginava, não era uma armação para me pegarem. Ferdinando apertou minha mão e não pegou no telefone para chamar nenhum policial... O cara não ficou chateado pelo fato de ter gastado uma parte da grana dele, encarou tudo com muita naturalidade. O cara até chegou a me oferecer uma recompensa, mas que recusei. Naquele momento me lembrei de que no ano de 2002 estava perambulando naquele local, 25kg mais magro e morando nas ruas por causa do meu primeiro surto psicótico. Me lembro que fui muito ajudado por várias pessoas e consegui sair daquela situação difícil, engordando 20kg em um mês. Fui muito ajudado nessas situações difíceis, e entregar a carteira foi apenas uma pequena retribuição de tudo o que me aconteceu de bom nesta vida.
Depois de conversarmos um pouco nos despedimos e combinamos de entregar o restante do dinheiro assim que o valor do empréstimo caísse em minha conta.
Fui embora com a sensação de que havia tirado um enorme peso de minhas costas. Uma sensação indescritível de liberdade e prazer! Sim, um prazer enorme pelo simples fato de poder andar por aí com a consciência tranquila, sem medos e paranoias. Claro que um pouco dessas paranoias tem um pouco a ver com a realidade, pois o mundo em que vivemos atualmente não faltam pessoas más e com piores intenções ainda.
Para comemorar mais uma missão cumprida, entrei em uma lanchonete e pedi uma coca cola geladinha e um pedaço de uma deliciosa torta de chocolate! É uma combinação perfeita na minha opinião, quer dizer, quase perfeita, por que tudo que é gostoso infelizmente nos faz mal. Mas é só não exagerar né?
Claro que pensei nas coisas que poderia ter comprado com a grana que havia encontrado, mas, claro que não pensei em fazer tal ato. Como disse, a liberdade e a consciência tranquila não tem preço. Não existe coisa melhor do que andar por aí sem peso na consciência.
Em uma época em que a corrupção está tomando conta de nosso país nada melhor do que dar um bom exemplo de cidadania e honestidade.
Infelizmente os candidatos dessas eleições pensam que ser "ficha limpa" é uma qualidade e ficam se gabando disso nas propagandas eleitorais. Honestidade não é somente qualidade, é, antes de tudo uma obrigação de qualquer cidadão. Enfim, a honestidade é uma qualidade mais do que obrigatória.