sexta-feira, 18 de abril de 2014

O albergue: lado B

   
     No último dia 15 fui chamado para conversar com a assistente social do abrigo. O motivo era apenas para me lembrar que o meu prazo estava se acabando. Como sou aposentado, ganhei apenas três meses de permanência, enquanto a maioria ganha seis meses, alguns ficando até mais tempo. 
    Quando cheguei ao abrigo em janeiro achei justa a decisão, afinal tenho a minha renda, apesar de não ser grandes coisas. Mas quem mandou me endividar? Esses três meses dariam para economizar uma boa grana, pagar o meu empréstimo com o INSS e até comprar uma TV. Também não acho justo ocupar uma vaga de quem está em uma situação mais delicada do que a minha. 
    Mas com o tempo vi que as coisas não funcionavam exatamente dessa maneira dentro do abrigo. Encontrei um cara de BH que é aposentado e que estava na casa. 
     - É só dizer na entrevista que você não é aposentado cara. - ele me disse.
    Não gosto de mentir, ficar inventando histórias. A assistente social faz inúmeras perguntas sobre nossas vidas na primeira entrevista, então a pessoa tem que ter uma história preparada para ser contada. Não sou santo, às vezes falo minhas mentiras, e às vezes oculto verdades que nem sempre precisam ser ditas. Não me sinto na obrigação de sair por ai contando todas as minhas falhas, afinal não estamos em um confessionário né?
    Voltando ao abrigo, além do cara de BH, me parece e se fala que tem muita gente aposentada por lá. Tem um cara que sai de lá todo dia de manhã, com capacete de moto na mão, provavelmente para trabalhar.  Também se fala que muita gente trabalha e passa um tempo no abrigo para juntar uma grana. E uma grande parte, por diversos motivos, só querem ficar lá apenas para passar o tempo, sem um objetivo definido e traçado. Vivem pulando de albergue em albergue, e nem pensam em fazer um curso ou procurar um trabalho. Afinal, os albergues estão ai para isso né? Eu confesso que me acomodei ao conhecer os albergues, já poderia estar com as minhas dívidas quitadas e alugar um quarto só para mim. Eu gasto o meu dinheiro com yogurte. chocolate, mamão pêra e maçã. Já outros preferem gastar com maconha, crack e cachaça. Esse post não é uma denúncia, não quero e nem gosto de saber da vida alheia, só queria ter o mesmo direito e o mesmo prazo que a maioria dos caras têm neste albergue. Se eles ganham seis meses ou mais, por que eu não posso ficar também esse tempo, já que não cometi nenhuma indisciplina? Algumas coisas neste país parecem querer nos convencer de que quem se dá bem é o espertinho, o malandro e quem fala a verdade e é honesto acaba sendo um otário. E é o que estou me sentindo no momento. Se tivesse ocultado a informação na entrevista provavelmente poderia continuar por mais três meses no arsenal. Ou será que não tive um prazo maior por ter esquizofrenia? Pelo que me lembro, não tive atrito com ninguém, entrava e saia calado daquele lugar. Mas continuarei a ser eu mesmo, sem máscaras e sem querer agradar a todo mundo. Se houvesse um detector de mentiras nas entrevistas do abrigo, provavelmente quase a metade dos que estão lá não entrariam. E um abrigo vazio não atrai ajudas e verbas, principalmente da prefeitura. Parece que o abrigo recebe essa ajuda pelo número de vagas, por isso não são tão exigentes assim na hora das entrevistas. Acho que fazem vistas grossa para um monte de coisas que acontecem lá dentro. Seria uma indústria da miséria? Se não houvesse pobreza, não existiriam albergues...
     Achava a minha profissão de operador de som um pouco sem graça e sem importância. Mas, analisando bem, é uma profissão importante, pois precisamos de lazer, arte, cultura e diversão. E, como operador de som, de uma forma indireta ajudava as pessoas a terem acesso a esses itens essenciais para uma vida digna.  E um músico, por exemplo, por melhor que seja, não seria nada se não houvesse um bom profissional  nas carrapetas da mesa de som. . 
    Então comecei a achar o trabalho dessas assistentes sociais de albergues um pouco deprimente. Afinal, enquanto existir a miséria e a pobreza, terão seus empregos garantidos. É algo parecido com a psiquiatria, enquanto houver a loucura, o lucro estará garantido para os profissionais da área. Claro que não estou dizendo que todos os psiquiatras não querem ver os seus pacientes curados, tudo tem sua exceção. Talvez por isso a cura da esquizofrenia não passa apenas de especulações e pesquisas que nem se ouve falar depois de um certo tempo. 
    Mas, como disse no post anterior, o abrigo é um arsenal da esperança para muita gente que quer realmente um trabalho ou está passando por uma situação difícil. Não é por que sai de lá que vou ficar falando mal da instituição. O que disse no post anterior não retiro, merece sim os aplausos o trabalho desse pessoal. Só acho que deveriam ser mais seletivos, pois tem muito cara lá apenas para curtir a vida, fumando o seu baseado e jogando futebol. Andam de uma lado para outro com suas caixas de som penduradas no pescoço, e pensam que todos somos obrigados a ter o mesmo gosto musical do que o deles. Às vezes, em um mesmo ambiente, duas caixas estão ligadas ao mesmo tempo com músicas diferentes. Não me lembro de ouvir  a palavra trabalho sair de suas bocas. Esse post não é uma denúncia, só queria ter o mesmo prazo que esses caras ganham, que é de seis meses. Eu só queria um tempo para ficar livre das minhas dívidas. Cheguei a me oferecer para trabalhar como voluntário todos os dias, para permanecer dentro do abrigo e não sair por ai gastando dinheiro. Mas a assistente social me negou esse pedido. Essas e outras coisas às vezes me fazem pensar que só os malandros é que se dão bem na vida. 
    Sinto que  só conseguirei juntar grana se me internar em uma clínica de recuperação de drogados, apesar de não ter problemas com o álcool e drogas. 
    Mas não vou ficar lamentando o tempo todo. Mas é preciso desabafar e mostrar a nossa indignação, é ruim guardar essas coisas dentro da gente. O jeito é partir para outra. São Paulo tem muitos albergues e, se não oferecerem vaga por eu ser aposentado, posso montar a minha barraca em qualquer lugar, desde que não atrapalhe a passagem dos pedestres. São Paulo, ao contrário de Belo Horizonte, tem inúmeras barracas espalhadas pela cidade. Não cheguei a ser abordado durante a minha viagem pelo Caminho dos Jesuítas. Já em Minas Gerais sou abordado várias vezes durante uma viagem. Sinal de que a polícia está fazendo o seu trabalho. 
    Posso também continuar as minhas andanças também. O próximo roteiro será o Caminho de Diamantina da estrada real, em Minas Gerais. Que saudades das montanhas, das cachoeiras e do povo simples do interior do estado mais acolhedor e hospitaleiro do Brasil!
cachoeira do Tabuleiro, situada no município de Conceição do Mato Dentro-MG, que faz parte do caminho de Diamantina da estrada real

    A verdade é que, analisando tudo o que já me aconteceu, tenho mais do que agradecer do que reclamar. Essa reportagem sobre esse garoto com problemas nos pés me fez sentir vergonha, e me deu forças para continuar. Claro que também não devemos nos contentar com a desgraça alheia, dizendo:
    - Sou feliz, por que tem gente pior do que eu...




     Mas é óbvio que devemos saber distinguir o sofrimento físico do sofrimento mental. Ambos são terríveis, a minha intenção aqui não é dizer qual é o pior. O sofrimento físico é visível e geralmente provoca a comoção das pessoas que se prontificam a ajudar. Já no sofrimento mental as coisas são bem diferentes. O portador é incompreendido. Geralmente dizem que é frescura, preguiça, etc. Na adolescência se torna mais grave quando os pais não entendem a situação de seus filhos, e dizem que isso é coisa de "aborrecentes". Já na infância costumam pensar que seus filhos apenas possuem uma imaginação fértil, etc.
     Se o meu blog tivesse um maior alcance, eu diria aos pais para terem um melhor diálogo com os seus filhos. Já adicionei duas garotas de uns 13 anos que queriam apenas conversar com alguém que entendia do assunto esquizofrenia, já que seus pais não tinham a mínima paciência para um diálogo. 
    Como deu para perceber, me desviei um pouco do foco do post, que era sobre o arsenal da esperança.  Mas sei lá o que me acontece, vou escrevendo e parece que baixa um espírito em mim e saio "psicografando" tudo o que me vem pela mente. Sempre escrevo no caderno, no computador não consigo me concentrar em nada e não consigo escrever uma frase sequer. Preciso do contato com a caneta, já até me disseram que isto se chama cinestesia, não sei bem ao certo o que vem a ser isso. 
     Mas sinto o que acontece é que tenho que ter a atenção toda focada para o que vou escrever, e, se tiver que me preocupar com a correta digitação, perco a concentração, ou melhor, nem a encontro para começar a escrever. Ou seja, a minha mente tem que estar 100% focada para o que vou fazer. Dizem que isso acontece com alguns escritores(eu não sou um escritor). A letra quando escrevo um post sai horrível, pior do que de médico, e se caprichar, não consigo acompanhar o meu raciocínio. 
   Voltando a assistente social, não insisti para continuar, não vou ficar choramingando. Mas tive que me conter, pois fiquei um pouco chateado quando ela me disse que uma família consegue "viver" com 600 reais. Se essa família tem dois filhos, alguém poderia me dizer como irão comprar o material escolar, ter uma razoável alimentação, vestuário, saúde, dentre outras coisas? Tive que sair da sala para não começar uma discussão. Ela prefere dar mais atenção aos que querem apenas se divertir lá no abrigo... Ou será mesmo preconceito com o esquizo aqui?
   Analisando bem, muitas profissões precisam da desgraça alheia para existirem:
- o farmacêutico precisa da doença
- o médico idem
- o policial precisa que hajam pessoas desonestas e desordeiras e por ai vai...




6 comentários:

  1. Tenho certeza que encontrará um lugar que condiz mais com a sua honestidade do que onde estava.

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    1. Olá, obrigado por visitar o blog. É algo complicado, não me acho melhor do que ninguém, mas esse tal de crack está invadindo cidades e deixando as pessoas paranoicas, tanto quem usa e quem não usa, com medo de ser assaltado ou outra coisa pior. Não sei onde vou achar um lugar onde não haja tanta violência e drogas, mas sei que vou encontrar. A paz interior eu tenho, mas a exterior também é muito importante. Espero que o meu depoimento tenha ajudado no seu trabalho de escola.

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  2. Julio, as pessoas evitam elogiar por medo de criar convencimento ou de descobrir mais tarde que se enganaram ao elogiar.
    Eu não ajo desta forma. Gosto de elogiar e criticar.
    Se aprendermos a lidar com isso da melhor forma, conseguimos crescer com individuos e como grupo.

    No momento quero elogiar seu post.
    Seu desabafo não é objetivo, mas revela seu poder de observação e analise dos acontecimentos.
    Não fica duvida, voce é um cara muito inteligente. Mas como já podemos saber, a inteligencia humana não é sinonimo de adaptação.
    As pessoas inteligentes precisam fazer mais força para se adaptar, a um mundo regido pelas emoções.

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    1. Obrigado pelas palavras. Em algumas coisas acho que tenho uma certa inteligência, mas em outras me considero um leigo, é meio complicado isso. Em relação a adaptação realmente as coisas são mais complicadas ainda, às vezes me sinto muito sozinho sem alguém para conversar nos albergues, pois geralmente são pessoas simples, e a conversa não é muito proveitosa, gosto de conversar muito sobre o comportamento humano, essas coisas. Mas no albergue só se fala em futebol e outros assuntos mais banais. Não que futebol seja coisa de ignorante, não é isso, às vezes é legal zoar e brincar com os times dos amigos, mas também é saudável falar sobre outros assuntos. Obrigado pela visita ao blog.

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  3. Caro Júlio
    Tudo que vc diz é pertinente e seu senso prático (o de lidar com as coisas do dia-a-dia da vida) é louvável.
    Isso te torna diferente da maioria das pessoas, que vivem o agora e não costumam fazer ligações entre as coisas, o que não propicia crescimento.
    Daí pq é difícil pra vc conseguir, digamos que, um bom "papo"...
    Mas vejo tb que aqui vc consegue...
    Daí a importância do seu blog para todos e até pra vc mesmo.
    Beijo no seu coração e não desista.
    Siga sempre em frente e em direção à luz. Ou seja, no bem.

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    1. Obrigado pelas palavras. Uma das causas de preferir ficar sozinho é o tipo de conversa que grande parte das pessoas têm, mas sei que não é só isso, tenho consciência que grande parte do problema está em mim, nas paranoias, principalmente a mania de perseguição. Mas procuro viver da melhor forma no meu canto, sem ficar se lamentando muito por essa situação.
      Abraços

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