quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A paz é mais importante

    Meus olhos estão ardendo, resultado de três noites de sono mal dormidas. O vizinho disse que emagreci um pouco, mas, na última vez em que subi em uma balança, o meu peso estava normal. Olho-me no espelho e noto que estou abatido e com uma expressão de cansaço. Estou precisando de tomar um daqueles sossega-leões para dar uma apagada geral para tirar o stress dos últimos meses. Mas não posso fazer isso agora, o clima no lugar onde moro está tenso. Moro no centro da cidade, a uma quadra da rua que é conhecida como  a crackolândia. Não posso simplesmente me apagar por algumas horas. Já me roubaram dinheiro, o controle remoto da tv, uma bermuda. Até chinelo usado os crackeiros não perdoam, para venderem e juntarem a grana para comprar a droga. 
    Moro nesse local há oito anos e sempre houve o tráfico de drogas, mas hoje a situação está insustentável, acho que por causa do crack, que é muito vendido aqui na região. Essa droga traz tanta confusão que até os traficantes do Rio de Janeiro desistiram de comercializarem esta droga. 
    Moro em uma construção de dois andares, que deve ter aproximadamente uns dezesseis quartos. E sempre houve um ou outro que comercializava drogas, e até que as coisas andavam tranquilas por aqui. Mas pouco a pouco pessoas envolvidas com o tráfico foram tomando conta do local, e hoje creio que 80% dos quartos estejam ocupados por estas pessoas. Já há algum tempo pensava em me mudar de endereço, mas sempre deixava para depois na vã esperança de que as coisas pudessem melhorar algum  dia. Já perdi a conta de quantas vezes bati de frente com esses caras, alguns sendo homicidas e a maioria com passagens pela polícia. Não tenho medo deles, desde que se defendam sozinho, mas agora percebi que eles se uniram e montaram uma pequena quadrilha no lugar onde moro. Ai não tem como lutar pelos meus direitos, já está na hora de abandonar o navio e procurar um lugar para viver em paz. 
Além do Horizonte  Roberto Carlos

    Não quero bancar o super herói e nem tenho a pretensão de mudar o mundo, mas acreditava que esses caras poderiam vender suas drogas sem violência e sem desrespeitar as pessoas de bem. Mas agora a ficha caiu, notei que sou minoria agora neste lugar e ainda quero viver bastante, mas também não me importo se de uma hora para outra ir desta para melhor, pois não tenho filhos para cuidar. 
     Já perdi a conta de quantas chamadas no celular não foram atendidas, pois tenho que mantê-lo escondido nas gavetas, o que abafa o som das chamadas. Mas também isso nem é o maior problema, pois geralmente são cobradores. rsrsrsrs  Vocês devem pensar que estou brincando, mas teve um dia que não consegui achar o dinheiro que havia escondido dentro do meu próprio quarto. 
   Tive a sorte de conseguir o melhor quarto do imóvel, e certo dia um vizinho me deu um galão de tinta. É um cara gente boa, daqueles que estão sempre dispostos a ajudar a todo mundo. Então dei uma reformada no meu quarto e o resultado ficou bacana. O contraste é gritante entre o resto do prédio e o meu quarto. Aos poucos, fui comprando algumas coisas que são necessárias para quem vive cerca de 23 horas por dia em seu próprio quarto: uma tv( CCE, de tubo mesmo), home theather, um frigobar, um PC, é claro, dois móveis e um bom colchão, já que fico nele "um pouco" mais do que uma pessoa deveria ficar. Lembro-me que, na época em que trabalhava, não me importava com nada disso. Passava a maior parte do dia trabalhando e tinha uma vida social mais ativa, e ficava no quarto mais para dormir mesmo. Tudo o que eu tinha era uma bolsa e as roupas, é claro. Era meio cigano, pois não aguentava trabalhar mais do que um ano em uma mesma firma. Mas, hoje, como passo a maior parte do tempo em meu quarto, vi que era necessário ter algo para me distrair e também me sentir bem dentro do lugar onde moro. É uma vida meio monótona, mas sempre notei que os outros moradores sentiam um pouco de inveja ao verem o meu quarto limpo e arrumado, além de estar de frente para a varanda e com uma boa ventilação, condição mais do que necessária para quem mora em uma cidade tão quente como é Ipatinga. 
    Mas, de uns tempos para cá, um dilema vem tomando conta dos meus pensamentos: vale a pena morar em um lugar que tenha tv, computador, frigobar, etc se não tem o principal, que é a paz? Me lembro do tempo em que fui morador de rua. Passei por situações complicadas, mas lembro-me que, ao deitar-me no pedaço de papelão na calçada, conseguia relaxar todos os meus músculos e ter uma boa noite de sono. Nos cinco meses em que fiquei nas ruas de Belo Horizonte, não fui incomodado nenhuma vez durante a noite, pelo contrário, às vezes era acordado por pessoas bondosas, que distribuíam comida para os moradores de rua em suas kombis. Eram espiritas, evangélicos, católicos, etc. Só recordo de uma vez em que uma noite roubaram as latinhas que havia catado o dia inteiro. 
    Tudo isso me faz refletir e uma interrogação não sai da minha cabeça nesses últimos dias: "Será que, para se ter a paz, é preciso abandonar as coisas materiais? Já que, não tendo nada, as pessoas não iriam nos invejar? Esses caras poderiam invejar um jogador de futebol, um ator, mas, logo eu? Provavelmente eles acham que eu tenho uma vida boa por estar aposentado. 
      Claro que, se comparando a vida que esses caras têm, até que a minha vida é boa, tirando é claro, a esquizofrenia. Eles não tem um salário fixo, não tiveram muita oportunidade de estudar, vivem amedrontados, com receio de que a polícia possa chegar a qualquer hora do dia e da noite. Estão quase sempre em estado de alerta. Pensam que todos os vizinhos são meio que inimigos, por causa do disque denúncia. A verdade é que estão mais paranoicos e loucos do que eu. Há cinco minutos atrás, um morador foi até a varanda, perto do meu quarto, com a certeza de que o haviam chamado. Há cerca de meia hora, cerca de seis caras estavam discutindo na esquina com pedaços de pau na mão. Nesse momento, um outro morador está agitado ao ouvir o som do comunicador do rádio da polícia e começa a alertar aos outros moradores sobre a chegada da viatura. Além dos homens da lei, eles ainda tem que ficar alertas em relação aos traficantes rivais, enfim, é uma vida bastante estressante. Podem ter algum ganho com as drogas, podem comprar uma TV 3D, roupas caras, mas a paz, que é o mais importante, eles não têm.
    Será que vale a pena mesmo ter uma vida dessas? Além de correrem o risco de ter algum transtorno mental devido ao uso da droga, ainda tem a paranoia de serem pegos pela polícia. Essa é uma combinação perigosamente explosiva, e qualquer motivo pode ser o estopim para que essa bomba estoure. Já estou cansado de tanta discussão e dessas paranoias, que eu acabei assimilando um pouco, apesar de não ter nenhum envolvimento com o tráfico de drogas. Mesmo morando nas ruas e passando por necessidades, nem cogitei a pensar nisso, e nem roubar também. Só cheguei a roubar alguns doces e pães de queijo em um dia em que estava completamente surtado. Mas também, convenhamos, isso não é nada, pois simplesmente estava pensando que o mundo iria acabar naqueles dias. A verdade é que estou me sentindo um estranho no ninho e cheguei a conclusão de já está na hora de partir, principalmente depois de constatar que o proprietário do imóvel simplesmente não está preocupado nenhum um pouco com a situação. O único motivo que o leva a ir no imóvel é pegar o dinheiro do aluguel, se o pau está quebrando, o problema são das pessoas de bem que ainda restam neste imóvel. 
    Já procurei alguns lugares para alugar aqui em Ipatinga, mas os quartos razoáveis fogem do meu orçamento. Como passo praticamente o dia inteiro no meu quarto, não abro mão de um mínimo de espaço e da internet também. Encontrei quartos bastante deprimentes, medindo cerca de 2x3m, e com telhas de amianto. A diferença para uma sauna não é tão grande assim, pois Ipatinga é uma cidade que considero mais quente do que o Rio de Janeiro, por exemplo. 
 Então, a ideia de voltar a morar nas ruas tomou conta dos meus pensamentos novamente. Só que agora não estou surtado, não é coisa de um portador de esquizofrenia que está pensando que estão todos contra ele e estão querendo matá-lo. A única coisa que sei é que tive paz e até fiz muitas amizades no período em que estive nas ruas. No momento, não estou nem conseguindo me concentrar para escrever, pois os moradores estão agitados por causa da polícia que está no local. Eles estão procurando saber quem é o caguete. Já estou vendendo as coisas que tenho, e acho que vou me sentir mais leve. Isso não é loucura de esquizofrênico, repito, é uma decisão de alguém que está cansado de viver com as portas trancadas, com medo de ser roubado. Nas ruas, poderei sentir o vento bater no meu rosto, andar despreocupadamente, sem medo de ser roubado. Quando saio para o almoço, fico com uma agonia dentro do peito, com medo de que arrombem a porta, e então volto para casa o mais rápido possível. Creio que, para ser exato, fico 23:30 horas dentro do meu quarto. Isso não é vida, quero ter paz e liberdade, o resto não importa mais. 
     Sei que é perigoso morar nas ruas. Em algumas cidades, botam fogo nos moradores sem motivo nenhum, se é que existe motivo para isso. Agora, com a chegada da copa do mundo, as prefeituras querem dar um limpa na cidade, uma camuflada, para os turistas pensarem que o Brasil é um país justo, um país rico, sem pobreza. Realmente o Brasil é um país rico, só que, como todos sabem, está nas mãos de poucos. Até hoje estou abismado como a Dilma chegou a conclusão de que um país rico é um país sem pobreza. Mas, voltando ao assunto copa do mundo, a prefeitura de Belo Horizonte até quer impedir os catadores de materiais recicláveis de trabalharam durante a copa das confederações e durante a copa do mundo. Eles irão fazer o que? Roubar?
depoimento de catador de material reciclável

    Com certeza, a prefeitura também está pensando em dar um destino para os moradores de rua, como estão fazendo no Rio de Janeiro, internando compulsoriamente usuários de crack e levando moradores de rua para "abrigos". A questão dos usuários de crack é complicada mesmo, ainda não cheguei a conclusão sobre a internação compulsória. Podem dizer que isso é desumano e tudo mais, e roubar um trabalhador que sofre um mês inteirinho para ganhar a sua vida também não é?
   Ai me vem uma pergunta em minha mente: Será que a pacificação dos morros cariocas foi motivada apenas pela copa do mundo? Ou seja, apenas para proteger os gringos e manter a imagem de uma cidade maravilhosa? Se não tivesse a copa do mundo, as favelas seriam pacificadas? A população continuaria a mercê dos traficantes? Gostaria de crer que não, que a intenção da pacificação seja proteger os moradores dos morros, que pagam seus impostos e merecem ter um pouco de paz. Se alguém souber se a pacificação dos morros começou antes do Brasil ser candidato a sediar a copa do mundo, por favor comente, e, se puder, coloque um link para podermos comprovar a veracidade do fato. 
    Bem, acho que o post da semana foi um pouco longo. Desculpem o desabafo, não quero que sintam pena ou dó de mim. São dois sentimentos que não acho muito legal. O meu post foi com a intenção de apenas mostrar a realidade de um cara que, enquanto conseguiu, trabalho com todas as suas forças, inclusive com dengue, com mão quebrada, com pé inchado, etc. Mas que não soube vencer ainda este transtorno chamado esquizofrenia e tem que se virar com um salário que não dá nem para alugar um quarto que caiba as poucas coisas que consegui com o dinheiro da aposentadoria. 
    Pretendo morar nas ruas o mais breve possível, acho que depois do pagamento do próximo mês. Creio que a situação pior do que tá não fica. O local onde vou morar ainda não decidi, mas provavelmente será mais tranquilo do que este que estou morando agora e tendo que pagar um aluguel. 
    Quase me mataram, por cismarem comigo quando estava tentando ganhar um dinheiro, ao consertar uma instalação elétrica de um quarto que pegou fogo. O antigo morador do quarto, um usuário de crack, simplesmente mandou que eu saísse do quarto. Houve um bate boca e depois voltei a consertar as instalações elétricas. Mas ele, não satisfeito, jogou uma bomba para dentro do quarto e só tive tempo de tampar os meus ouvidos. Depois que a bomba estourou, corri atrás do cara e começamos a discutir, e uma outra pessoa chegou por trás e me desferiu um golpe, provavelmente uma coronhada, pelo dor que senti na hora. Confesso que fiquei cerca de cinco segundos para recuperar totalmente os sentidos. Fui para o pronto socorre e levei três pontos na cabeça, por apenas querer ganhar uma grana honestamente. 
    Esses caras estão botando terror na vizinhança. Todo dia tem uma briga. Soltam foguetes perto da casa das pessoas. E não são bombinhas de São João, elas causam um estrago muito grande se estourar em uma pessoa. Chegaram  a me oferecer uma arma para me vingar dessas pessoas, afirmando que eu poderia matar qualquer um, por que sou "doido" e não seria responsabilizado pelos meus atos. Claro que não aceitei, mas confesso que o meu complexo messiânico* aflorou em minha mente e me vi livrando a rua dessas pessoas que estão perturbando a ordem pública. Um filme passou em minha mente: " Me vi com um revólver na mão, em um confronto com os traficantes, e, após uma intensa troca de tiros, sairia vencedor. Então corri para o meu quarto, e esperei a polícia chegar. Assim que a viatura chegou, do alto da minha janela, disse para o capitão:
     - Missão dada é missão cumprida senhor!
    E então entraria para o meu quarto e tiraria a minha própria vida, ciente de que  fiz um bem para a comunidade, que já está cansada de tanta violência. Seria o heroico fim que sempre sonhei para mim, mas sei que não vale a pena fazer a justiça com as próprias mãos, o melhor que tenho que fazer é me mudar de lugar mesmo. Eu estou tendo uma enorme dificuldade de escrever o texto, pois alguns traficantes estão juntos no quarto ao lado do meu, com medo da polícia que apareceu aqui de manhã. Sem contar que o funk está rolando alto aqui, e hoje sei até de cor as letras dessas "músicas". Gostaria de reiterar que não tenho nada contra o funk do Claudinho e Bochecha, o MC Claudinho e outros. Me refiro a esse funk atual, que só tem uma batida repetitiva e com letras que incitam a violência e ao uso das drogas. 
    Nunca irei fazer justiça com minhas próprias mãos. Como digo sempre, a anjinho sempre ganha do diabinho em minha consciência. Sei que irei me arrepender deste ato, é apenas uma raiva passageira, que qualquer pessoa tem. Nós, portadores de esquizofrenia, não podemos atribuir todos os nossos sentimentos e pensamentos ao fato de termos a patologia. Coisas que temos, como por exemplo, a mania de perseguição, várias pessoas também tem, só que em menor grau. 
    Quero pedir desculpas novamente pelo desabafo. Não sei se perceberam, mas os meus últimos posts foram meio amargos e tal, mas isso é o reflexo do meu estado atual, não tem como fingir. Mas acredito que as coisas irão melhorar e, mesmo morando nas ruas, não abandonarei a caneta e o papel, e estarei sempre postando no blog. 

    Me desculpem também se houve alguns erros de português. Está difícil de se concentrar. Só resta esperar o próximo pagamento, juntar minhas coisas e ir embora deste lugar. Não quero confusão com ninguém. Os traficantes pensam que sou eu que estou fazendo denúncias anônimas, já fizeram algumas coisas não muito legais comigo, mas não guardo mágoa. Acabei de dar água gelada a um garoto que é bem atentado mesmo, e que já tirou vários noites do meu sono. 
* o complexo messiânico nem sempre está relacionada a figura de Jesus, pode ser a figura de um herói,  é uma situação em que a pessoa se sente o salvador da pátria. 

4 comentários:

  1. Júlio, torço para que você consiga outra solução a morar nas ruas. Não imagino que isso seja bom para ninguém, ainda mais com a patologia que você possui. Talvez encontre um quarto para alugar na casa de alguém, alguma alma caridosa pode te ajudar, ou então ficar em algum abrigo. Desejo sorte e felicidade a você que tão bem nos faz com seus depoimentos desmitificando nós, os esquizofrênicos. Grande abraço e força.

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    1. Eu só queria ficar no meu canto, com as minhas músicas, com o computador, mas, infelizmente com um salário mínimo não dá nem para alugar um quarto que caiba o pouco que consegui comprar. Só para você ter uma ideia, um quarto com o espaço necessário para colocar as coisas que tenho custa 280 reais por mês. É quase a metade do salário. Não quero alugar um quarto para ficar 23 horas por dia trancado nele, sem espaço para colocar uma TV, um computador, etc. Vou ficar bem morando nas ruas. Obrigado pela visita ao blog, continuarei a escrever, indo em uma lan house.

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  2. só Jesus pode trazer paz a uma mente cansada, minha ou sua...

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    1. Concordo, mas não podemos ficar parado esperando as coisas acontecerem, esperei bastante para tomar essa decisão, mas, infelizmente, o crack está se alastrando no país todo, e aqui está um verdadeiro inferno. Tenho a paz dentro de mim, mas se o ambiente externo não estiver legal, não tem como ter uma tranquilidade.

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