sábado, 1 de junho de 2013

Estrada Real:12º dia

19 de maio de 2013-sábado
Capela do Saco-Carrancas



    Até que a noite não foi das mais frias. Estava planejando montar a barraca colada a parede do salão de eventos de Capela do Saco, para evitar um pouco o vento frio que não parava de soprar na região.
    Um morador do povoado me cumprimentou e começamos a conversar. Ele me disse que o balseiro, que tinha a chave do salão, poderia me deixar dormir dentro do salão. Fui então para a beira do rio e esperei o balseiro terminar sua jornada de trabalho, que deve ser bem cansativa. Não faço ideia de quantas vezes ele atravessa o Rio São Francisco, mas com certeza não são poucas, pois ele praticamente não parou durante o período que fiquei esperando-o.
    Por volta das seis horas ele encerra suas atividades. Converso com ele e explico a minha situação. É um cara simples e sem maiores problemas, me empresta a chave do salão, onde tive uma boa noite de sono.
    Por volta das sete da manhã, já estava de pé, pronto para mais um dia de caminhada. Tomo um bom banho gelado, apesar do frio, mas valeu a pena, fiquei mais animado. Nem fiquei bravo quando vi a fiação do chuveiro atrás da porta quando sai do banho.
    Sigo então para Carrancas, distante cerca de 30km por uma estrada de terra, que, segundo a planilha, não está em boas condições nos últimos dez quilômetros.
    A mochila já está dando indícios de que não poderá aguentar o peso(10kg) até o final da caminhada. A costura das duas alças já está começando a se desfazer. Se, por acaso, uma alça arrebentar, estarei em sérios apuros, pois somente em lojas especializadas(caça e pesca) é que se encontra mochilas deste tipo. Comprei uma do Paraguai na primeira vez e não durou uma semana. Teria que arrumar carona até uma cidade de maior porte e comprar uma outra mochila, que aguente mais peso. Para resolver o problema, amarro a barraca e o colchonete juntos, para carregá-los no ombro, e não na fivela da mochila, como estava fazendo.
    Os primeiros quilômetros são complicados, caminho tentando achar uma posição em que o colchonete não me incomode tanto. Não estava contando com essa, de ficar carregando um peso de quatro quilos nos ombros, isso diminui e muito a minha caminhada e o meu rendimento. Mas é melhor se precaver.
    Além da bolha no pé, uma dorzinha chata no músculo da canela esquerda passa a me incomodar também(é a idade do condor). Ontem me alimentei mal, não encontrei restaurante para almoçar no caminho, e parece que o corpo cobra isso no dia seguinte
se parece com o que?
    Já não estou com aquele ânimo do início, em que tudo era novidade. Já está batendo um tédio por causa dessa rotina de caminhada, o cansaço já é maior do que o encanto de contemplar as belas paisagens do caminho da estrada real.
    Fico sempre desanimado quando vejo os marcos e percebo que ainda falta muito para se chegar a Paraty. No momento não consigo achar um estímulo que me dê animo e alegria de continuar a caminhar, tem dias que sinto que é uma obrigação andar. Creio que já devo estar perto de completar uns 40% do trajeto. Acho que, quando estiver faltando cerca de 200km para o final, irei encontar motivação para proseguir.
    Depois de percorrer cerca de 15km, consigo uma carona. Quero evitar a serra e a estrada ruim. O motorista não conhece a região e o caminho para Carrancas, e, eu, com cara de quem sabe tudo, disse:
    - Ah! É só seguir os marcos da estrada real!
    Mais adiante no caminho, ao passarmos por uma fazenda, avisto uma placa com os seguintes dizeres:
"Só 4x4"
    Falo para o motorista sobre o aviso, mas ele não me responde e continua o caminho. Logo nos deparamos com uma subida muito íngreme e cheio de pedras escorregadias. O cara não faz o retorno e continua a seguir em frente. Somente quando a saveiro começa  a exalar um cheiro de queimado é que o cara chega a conclusão de que o carro não iria aguentar o tranco.
    -É, deve ter um caminho melhor para Carrancas. - eu disse, meio sem graça. (meio não, totalmente sem graça, o cara ia seguir o caminho certo se eu não desse o pitaco).
    A subida era estreita, e com muita dificuldade, conseguimos arrumar o terreno, colocando pedras nos buracos, para que o carro pudesse dar a ré e retornar. Ficamos pulando de fazenda em fazenda até encontrar alguém que soubesse nos informar sobre um caminho mais tranquilo.
    Chegamos em Carrancas por volta do meio dia. É uma cidade bem pequena, mas é famosa por suas belas cachoeiras, boas para esportes radicais. No restaurante vejo que cenas de algumas novelas da Globo foram gravadas na cidade, ao ver nas paredes várias fotos de atores globais almoçando no restaurante.

    Depois de saciada a fome, vou para a lan house da cidade que tem uma net bem lenta, para variar. Ao conectar a câmera no PC, o desespero! Constato que o cartão de memória está danificado, pois a câmera mostra as fotos, mas o PC não as reconhece. Fiquei muito triste mesmo, mas de cem fotos da viagem não poderiam ser utilizadas.
    Resolvo consultar o "DR. Google" e acho um programa supimpa que recupera arquivos apagados em HD's, pen drives e cartões de memória. É o Recuva, é só clicar no link, se você está com esse tipo de problema, não precisa ficar desesperado e jogar o seu cartão de memória fora. Ele recuperou 90% das fotos da viagem e o cartão ficou novo.
    Por volta das sete horas da noite, dois policiais me informam que é proibido montar barracas dentro dos limites do município. A alegação é que outros turistas estavam fazendo o mesmo, montando suas barracas dentro da cidade e permanecendo por lá vários dias.
    Tento explicar a minha situação para os policiais, dizendo que estava muito cansado para proseguir, estava caminhando há vários dias sem parar. Digo para eles que minha barraca não é própria para o frio e que seria difícil dormir no mato naquelas condições. Também disse que não iria permanecer na cidade, e que as sete horas a barraca estaria desmontada. Enfim, praticamente implorei, mas eles continuaram irredutíveis e até me convidaram para sair da cidade, me mostrando o caminho e dizendo que eu tinha que seguir um quilômetro adiante na estrada de terra, na maior escuridão.
    Até que tentei prosseguir, mas não dava. Não tinha como caminhar no escuro, poderia pisar em uma pedra ou em um buraco e me machucar seriamente. Eu entendo a posição dos policiais. Se a lei municipal existe, é para ser cumprida. Mas eles poderiam ter sido mais compreensivos e terem aberto uma exceção, já que eu não iria permanecer na cidade. Eu já havia me identificado e praticamente implorei para ficar ali naquela noite, e me senti meio que marginalizado por não ser rico e trazer dinheiro para a cidade.
    Estava ciente desde o inicio de que passaria frio, calor de dia, algumas dores e outras coisas mais. Mas, ser tratado como um bandido e ser convidado a me retirar da cidade doeu mais do que tudo até agora. Nem sei descrever o que senti naquela hora, cheguei a pensar que não valeu a pena ser uma pessoa correta em toda a minha vida.
    Deu vontade de parar. No que depende de mim, ou seja, minhas condições físicas, eu me garanto. Posso chegar ao final até cambaleando, mas eu chego, se não acontecer nada fora do normal. Mas se em toda cidade eu for tratado dessa maneira, não tem como seguir. A barraca não é boa para o frio e contra  a chuva. O jeito é montá-la sempre em lugares cobertos.
    Em Prados e em São João Del Rei também fui abordado por policias, mas eles foram muito educados comigo e até me deram dicas sobre o caminho.
    A impressão é de que Carrancas fez cara feia para mim, por eu não ser um turista rico. Aliás, nem turista eu era naquele momento, só estava de passagem. A verdade é que o turismo foi elitizado na cidade, pois até a área de camping foi desativada. Acho que as novelas deixaram a cidade "se achar", principalmente os políticos. Infelizmente, só quem tem grana é que poderá conhecer Carrancas, ela faz cara feia para os menos afortunados.

4 comentários:

  1. Grande Julio, que a força esteja com você!

    Que triste essa situação em Carrancas, hein? Passei por algo semelhante enquanto pedalava na Rio-Santos, rumo à Ubatuba, e resolvi pernoitar no banco de uma praia de um bairro de Angra. Os "seguranças" me expulsaram como um cachorro no meio da noite, e fui obrigado a pedalar vários quilômetros na penumbra da estrada, até achar um lugar pra ficar. Foi, sem dúvidas, a pior experiência da minha vida, não tanto pelo risco de vida, mas pela humilhação que passei.

    Por sorte encontrei na outra praia pessoas que me receberam como um filho, e mesmo sem nunca terem me visto, me acolheram e foram solícitos em tudo, dando abrigo e comida.

    Imagino que para cada gente ruim nesse mundo, há umas 99 muito boas. Confie em Deus, confie em si mesmo e siga em frente. Estamos todos torcendo por você!

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    1. Realmente a humilhação é a pior parte dessa história. Ser tratado como um bandido dá uma sensação de impotência, pois não tem como conversar e tentar mostar para a policia que queremos só caminhar, pedalar, enfim, conhecer esse Brasil tão bonito. As coisas positivas realmente se sobressaem as negativas, e isso me faz continuar. Nem dá para relatar tudo de bom que tem me acontecido no caminho, as pessoas legais com quem converso e me oferecem um cafezinho nas estradas de terra, as pessoas nas cidades maiores que acham engraçado a minha viagem e por ai vai. Não devemos nos abater por isso, faz parte da caminhada, mas vale a pena continuar caminhando.

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  2. As cidades turísticas de Minas sofrem disso mesmo: elitização. Em Tiradentes é a mesma coisa. É uma pena isso, interior de Minas que seria lugar de acolhimento e contato com a natureza, se torna reduto dos ricaços que vão lá pra gastar com restaurantes caros e hotéis de luxo. É lamentável.

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  3. Verdade, acho que algo parecido está acontecendo com os estádios de futebol. Agora, que ficaram modernos, não tem para o povo prestigiar o seu time de coração. Logo o povo que foi muito importante para o surgimento e crescimento do futebol no Brasil. Agora que o futebol virou simplesmente um negócio e deixou de ser uma paixão para os jogadores, o povo não tem direito mais a assistir um jogo no estádio. Com as cidades histórias acontece o mesmo. Nada contra quem trabalhou e conseguiu ter uma boa condição financeira. O problema é que o salário mínimo é uma vergonha e não dá para nada.

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